A revoluçáo dos bichos
Título: A Revolução dos Bichos
Título Original: Animal Farm
Autor: George Orwell
Gênero: Sátira
Ano: 1945
APRESENTAÇÃO
George Orwell foi um libertário. A Revolução dos Bichos, em
suas metáforas, revela uma aversão a toda espécie de autoritarismo, seja ele
familiar, comunitário, estatal, capitalista ou comunista. A obra é de uma genial
atualidade. Apesar de tudo o que alguns poucos homens já fizeram e lutaram,
ainda estamos e vivemos sob os que insistem em dominar aquém da ética e além
da lei. Sejamos diligentes, a luta continua.
Um dia conseguiremos distinguir a diferença entre porcos e
homens.
Nélson Jahr Garcia
CAPÍTULO I
O Sr. Jones. proprietário da Granja do Solar, fechou o
galinheiro à noite, mas estava bêbado demais para lembrar-se de fechar também
as vigias. Com o facho de luz da sua lanterna balançando de um lado para o
outro, atravessou cambaleante o pátio, tirou as botas na porta dos fundos, tomou
um último copo de cerveja do barril que havia na copa, e foi para a cama, onde
sua mulher já ressonava.
Tão logo apagou-se a luz do quarto, houve um grande alvoroço
em todos os galpões da granja. Correra, durante o dia, o boato de que o velho
Major, um porco que já se sagrara grande campeão numa exposição, tivera um
sonho muito estranho noite anterior e desejava contá-lo aos outros animais.
Haviam combinado encontrar-se no celeiro, assim que Jones se retirasse. O
velho Major (chamavam-no assim, muito embora ele houvesse comparecido a
exposição com o nome de Beleza de Willingdon) gozava de tão alto conceito na
granja, que todos estavam dispostos a perder uma hora de sono só para ouvi-lo.
Ao fundo do grande celeiro, sobre uma espécie de estrado,
estava o Major refestelado em sua cama de palha, sob um lampião que pendia de
uma viga. Com doze anos de idade, já bastante corpulento, era ainda um porco
de porte majestoso, com um ar sábio e benevolente, a despeito de suas presas
jamais terem sido cortadas. Os outros animais chegavam e punham-se a
cômodo, cada qual a seu modo. Os primeiros foram os três cachorros,
Ferrabrás, Lulu e Cata-vento, depois os porcos, que se sentaram sobre a palha,
em frente ao estrado. As galinhas empoleiraram-se nas janelas, as pombas
voaram para os caibros do telhado, as ovelhas e as vacas deitaram-se atrás dos
porcos e ali ficaram a ruminar. Os dois cavalos de tração, Sansão e Quitéria,
chegaram juntos, andando lentamente e pousando no chão os enormes cascos
peludos, com grande cuidado para não machucar qualquer animalzinho
porventura oculto na palha. Quitéria era uma égua volumosa, matronal já
chegada à meia-idade, cuja silhueta não mais se recompusera após o
nascimento do quarto potrinho. Sansão era um bicho enorme, de quase um metro
e noventa de altura, forte como dois cavalos. A mancha branca do focinho davalhe
um certo ar de estupidez e, realmente, não tinha lá uma inteligência de
primeira ordem, embora fosse grandemente respeitado pela retidão de caráter e
pela tremenda capacidade de trabalho. Depois dos cavalos chegaram Maricota,
a cabra branca, e Benjamim, o burro. Benjamin era o animal mais idoso da
fazenda, e o mais moderado. Raras vezes falava e, normalmente, quando o fazia,
era para emitir uma observação cínica para dizer, por exemplo, que Deus lhe
dera uma cauda para espantar as moscas e que, no entanto, seria mais do seu
agrado não ter nem a cauda nem as moscas. Era o único dos animais que nunca
ria. Quando lhe perguntavam por que, respondia não ver motivo para riso. Não
obstante, sem que o admitisse abertamente, tinha certa afeição por Sansão;
normalmente passavam os domingos juntos no pequeno potreiro existente atrás
do pomar, pastando lado a lado em silêncio.
Mal se haviam acomodado os dois cavalos quando uma ninhada
de patinhos órfãos desfilou celeiro adentro, piando baixinho e procurando um
lugar onde não fossem pisoteados. Quitéria protegeu-os com a pata dianteira e
os patinhos ali se aconchegaram, caindo no sono. No último instante, Mimosa, a
égua branca, vaidosa e fútil, que puxava a aranha do Sr. Jones, entrou,
requebrando-se graciosamente e chupando um torrão de açúcar. Tomou um
lugar bem a frente e ficou meneando a sua crina branca, na esperança de
chamar atenção para as fitas vermelhas que a adornavam. Finalmente, chegou o
gato, que procurou, como sempre, o lugar mais morno, enfiando-se entre
Sansão e Quitéria; ressonou satisfeito durante toda a fala do Major, sem ouvir
uma só palavra.
Todos os animais estavam presentes, exceto Moisés, o corvo
domesticado, que dormia fora, num poleiro junto à porta dos fundos. Quando o
Major os viu bem acomodados e aguardando atentamente, limpou a garganta e
começou:
Camaradas, já ouvistes, por certo, algo a respeito do
estranho sonho que tive a noite passada. Entretanto, falarei do sonho mais tarde.
Antes, as coisas a dizer. Sei, camaradas, que não estarei convosco por muito
tempo e antes de morrer considero uma obrigação transmitir-vos o que tenho
aprendido sobre o mundo. Já vivi bastante e muito tenho refletido na solidão da
minha pocilga. Creio poder afirmar que compreendo a natureza da vida sobre
esta terra, tão bem quanto qualquer outro animal. É sobre isso que desejo falarvos.
Então, camaradas, qual é a natureza da nossa vida?
Enfrentemos a realidade: nossa vida é miserável, trabalhosa e curta. Nascemos,
recebemos o mínimo de alimento necessário para continuar respirando e os que
podem trabalhar são forçados a fazê-lo até a última parcela de suas forças; no
instante em que nossa utilidade acaba, trucidam-nos com hedionda crueldade.
Nenhum animal, na Inglaterra, sabe o que é felicidade ou lazer, após completar
um ano de vida. Nenhum animal, na Inglaterra, é livre. A vida de um animal é feita
de miséria e escravidão: essa é a verdade nua e crua.
Será isso, apenas, a ordem natural das coisas? Será esta
nossa terra tão pobre que não ofereça condições de vida decente aos seus
habitantes? Não, camaradas, mil vezes não! O solo da Inglaterra é fértil, o clima
é bom, ela pode oferecer alimentos em abundância a um número de animais
muitíssimo maior do que o existente. Só esta nossa fazenda comportaria uma
dúzia de cavalos, umas vinte vacas, centenas de ovelhas vivendo todos num
com uma dignidade que, agora, estão além de nossa imaginação. Por que,
então, permanecemos nesta miséria? Porque quase todo o produto do nosso
esforço nos é roubado pelos seres humanos. Eis aí, camaradas, a resposta a
todos os nossos problemas. Resume-se em uma só palavra Homem. O
homem é o nosso verdadeiro e único inimigo. Retire-se da cena o Homem, e a
causa principal da fome e da sobrecarga de trabalho desaparecerá para sempre.
O Homem é a única criatura que consome sem produzir. Não
dá leite, não põe ovos, é fraco demais para puxar o arado, não corre o suficiente
para alcançar uma lebre. Mesmo assim, é o senhor de todos os animais. Põenos
a trabalhar, dá-nos de volta o mínimo para evitar a inanição e fica com o
restante. Nosso trabalho amanha o solo, nosso estrume o fertiliza e, no entanto,
nenhum de nós possui mais do que a própria pele. As vacas, que aqui vejo à
minha frente, quantos litros de leite terão produzido este ano? E que aconteceu a
esse leite, que deveria estar alimentando robustos bezerrinhos? Desceu pela
garganta dos nossos inimigos. E as galinhas, quanto ovos puseram este ano, e
quantos se transformaram em pintinhos? Os restantes foram para o mercado,
fazer dinheiro para Jones e seus homens. E você, Quitéria, diga-me onde estão
os quatro potrinhos que deveriam ser o apoio e o prazer da sua velhice? Foram
vendidos com a idade de um ano nunca você tornará a vê-los. Como paga
pelos seus quatro partos e por todo o seu trabalho no campo, que recebeu você,
além de ração e baia?
Mesmo miserável como é, nossa vida não chega ao fim de
modo natural. Não me queixo por mim que tive até muita sorte. Estou com doze
anos e sou pai de mais de quatrocentos porcos. Isto é a vida normal de um
varrão. Mas, no fim, nenhum animal escapa ao cutelo. Vós, jovens leitões que
estais sentados a minha frente, não escapareis de guinchar no cepo dentro de
um ano. Todos chegaremos a esse horror, as vacas, os porcos, as galinhas, as
ovelhas, todos. Nem mesmo os cavalos e os cachorros escapam a esse destino.
Você, Sansão, no dia em que seus músculos fortes perderem a rigidez, Jones o
mandará para o carniceiro e você será degolado e fervido para os cães de caça.
Quanto aos cachorros, depois de velhos e desdentados, Jones amarra-lhes uma
pedra ao pescoço e joga-os na primeira lagoa.
Não está, pois, claro como água, camaradas, que todos os
males da nossa existência têm origem na tirania dos seres humanos? Basta que
nos livremos do Homem para que o produto de nosso trabalho seja somente
nosso. Praticamente, da noite para o dia, poderíamos nos tornar ricos e livres.
Que fazer, ? Trabalhar dia e noite, de corpo e alma, para a derrubada do gênero
humano. Esta é a mensagem eu vos trago, camaradas: Revolução! Não sei
quando sairá esta Revolução, pode ser daqui a uma semana, ou daqui a um
século, mas uma coisa eu sei, tão certo quanto o ter eu palha sob meus pés:
mais cedo ou mais tarde, justiça será feita. Fixai camaradas isso, para o resto de
vossas curtas vidas! E, sobretudo, transmiti esta minha mensagem aos que virão
depois de vós, para que as futuras gerações prossigam na luta, até a vitória.
E lembrai-vos, camaradas, jamais deixai fraquejar vossa
decisão. Nenhum argumento poderá deter-vos. Fechai os ouvidos quando vos
disserem que o Homem e os animais têm interesses comuns, que a
prosperidade de um é a prosperidade dos outros. É tudo mentira. O Homem não
busca interesses que não os dele próprio. Que haja entre nós, uma perfeita
unidade, uma perfeita camaradagem na luta. Todos os homens são inimigos,
todos os animais são camaradas.
Nesse momento houve uma tremenda confusão. Enquanto o
Major falava, quatro ratos haviam emergido de seus buracos e estavam sentados
nas patinhas de trás, a ouvi-lo. De repente, os cachorros lhes deram, pela
presença, e somente devido à rapidez com que sumiram nos buracos foi que os
ratos conseguiram escapar com vida. O Major levantou a pata, pedindo silêncio.
Camaradas disse ele eis aí um ponto que precisa ser
esclarecido. As criaturas selvagens, tais como os ratos e os coelhos, serão
nossos amigos ou nossos inimigos? Coloquemos o assunto em votação.
Apresento à assembléia a seguinte questão: os ratos são camaradas?
A votação foi realizada imediatamente e concluiu-se, por
esmagadora maioria, que os ratos eram camaradas. Houve apenas quatro votos
contra, dos três cachorros e do gato que, depois se descobriu votara pelos dois
lados. O Major prosseguiu:
Pouco mais tenho a dizer. Repito apenas: lembrai-vos
sempre do vosso dever de inimizade para com o Homem e todos os seus
desígnios. Qualquer coisa que ande sobre duas pernas é inimigo, qualquer
coisa que ande sobre quatro pernas, ou tenha asas, é amigo. Lembrai-vos
também de que na luta contra o Homem não devemos assemelhar-nos a ele.
Mesmo quando o tenhais derrotado, evitai seus vícios. Animal nenhum deve
morar em nem dormir em camas, nem usar roupas, nem beber álcool, nem fumar,
nem tocar em dinheiro, nem fazer comércio. Todos os hábitos do Homem são
maus. E, principalmente, jamais um animal deverá tiranizar outros animais.
Todos os animais são iguais.
E agora, camaradas, vou contar-vos o sonho que tive a noite
passada. Não sei como explicá-lo. Foi um sonho sobre como será o mundo
quando o Homem desaparecer. Mas lembrou-me algo que há muito eu
esquecera. Há anos, quando eu ainda um leitãozinho, minha mãe e as outras
porcas costumavam cantar uma antiga canção da qual só conheciam a melodia e
as três primeiras palavras. Na minha infância aprendi a melodia, depois a
esqueci. A noite passada, entretanto, ela me voltou à memória, O mais
interessante é que me lembrei também dos versos os quais, tenho certeza,
foram cantados pelos animais de antanho, e depois esquecidos durante várias
gerações. Vou cantar essa canção, camaradas. Estou velho e minha voz é rouca,
mas quando vos houver ensinado a melodia, podereis cantá-la melhor do que eu.
Chama-se Bichos da Inglaterra.
O velho Major limpou a garganta e começou a cantar. De fato, a
voz era roufenha, mas ele cantava razoavelmente, e a melodia era bem
movimentada, algo entre Clementine e La Cucaracha. Os versos diziam o
seguinte:
Bichos ingleses e irlandeses,
Bichos de todas as partes!
Eis a mensagem de esperança,
No futuro que virá!
Cedo ou tarde virá o dia,
Cairá a tirania
E os campos todos da Inglaterra
Só aos bichos caberão!
Não mais argolas em nossas ventas,
Dorsos livres dos arreios,
Freios e esporas, descartados,
Chicotadas abolidas!
Muito mais ricos do que sonhamos
Possuiremos daí por diante
O trigo, o feno, e a cevada,
Pasto aveia e feijão!
Brilham os campos da Inglaterra,
Águas puras rolarão.
Ventos leves soprarão
Saudando a redenção!
Lutemos todos por esse dia
Mesmo que nos custe a vida!
Cavalos, vacas, perus e gansos,
Liberdade conquistemos!
Bichos ingleses e irlandeses,
Bichos de todas as partes!
No futuro que virá!
O canto levou os animais à mais extrema excitação. Antes de o
Major chegar ao fim, já haviam começado a cantar por conta própria. Até os mais
estúpidos pegaram a melodia e algumas palavras; os mais espertos, como os
porcos e os cachorros decoraram a canção em poucos minutos. Então, depois de
alguns ensaios preliminares, toda a granja atacou Bichos da Inglaterra, em
formidável uníssono. As vacas mugiam a canção, os cachorros latiam-na, as
ovelhas baliam-na, os cavalos relinchavam-na, os patos grasnavam-na. Tal foi o
enlevo, que cantaram de ponta a ponta, cinco vezes sucessivamente, e teriam
continuado a noite inteira se não fossem interrompidos.
Infelizmente, o alarido acordou Jones, que pulou da cama certo
de que havia raposa no pátio. Deu de mão na espingarda, sempre pronta a um
canto do quarto, e descarregou-a na escuridão. O chumbo foi encravar-se na
parede do celeiro, e a reunião dispersou-se num abrir e fechar de olhos. Cada
qual correu para seu pouso. As aves saltaram para os poleiros, o gado deitou-se
na palha e, em poucos instantes, toda a fazenda dormia.
CAPÍTULO II
Daí a três noites faleceu o velho Major, tranqüilamente, durante
o sono. Seu corpo foi enterrado no fundo do pomar.
Começava o mês de março. Durante os três meses seguintes
houve uma intensa atividade secreta.
As palavras do Major haviam dado uma perspectiva de vida
inteiramente nova aos animais de maior inteligência da granja. Não sabiam
quando teria lugar a Revolução prevista pelo Major, nem tinham razões para
acreditar que fosse durante a existência deles próprios, mas percebiam
claramente o dever de prepararem-se para ela. A tarefa de instruir e organizar
os outros recaiu naturalmente sobre os porcos, reconhecidamente os mais
inteligentes entre os animais. Salientavam-se, entre eles, dois jovens varrões,
Bola-de-Neve e Napoleão, que o Sr. Jones criava para vender. Napoleão era um
cachaço Berkshire, de aparência ameaçadora, o único Berkshire da fazenda,
pouco falante, mas com a reputação de possuir grande força de vontade. Bolade-
Neve era mais ativo do que Napoleão, de palavra mais fácil e mais imaginoso,
porém não gozava da mesma reputação quanto à solidez do caráter. Todos os
demais porcos da fazenda eram castrados. Dentre estes, o mais conhecido era
porquinho gordo chamado Garganta, de bochechas redondas, olhos sempre
piscando, movimentos lépidos e voz aguda. Manejava a palavra com brilho e,
quando discutia algum ponto mais difícil, tinha o hábito de dar pulinhos de um
lado para o outro e abanar o rabicho, o que era assaz persuasivo. Diziam que
Garganta era capaz de convencer que o preto era branco.
Esses três haviam organizado os ensinamentos do Major num
sistema de pensamento a que deram o nome de Animalismo. Várias noites por
semana, depois que Jones dormia, realizavam reuniões secretas no celeiro e
expunham aos outros os princípios do Animalismo. De início, encontraram certa
apatia e muita estupidez. Alguns animais mencionaram o dever de lealdade para
com Jones, a quem se referiam como o Dono, ou fizeram comentários
elementares do tipo: Seu Jones nos alimenta. Se ele fosse embora, nós
morreríamos de fome. Outros faziam perguntas como: Que nos importa o que
acontecerá depois da nossa morte? ou: Se essa Revolução vai ocorrer de
qualquer maneira, que diferença faz trabalharmos por ela ou não?, e os porcos
enfrentavam grandes dificuldades para fazê-los ver que isso era contrário ao
espírito do Animalismo. As perguntas mais estúpidas eram sempre as de
Mimosa a égua branca. A primeira pergunta que fez a Bola-de-Neve foi:
Continuará havendo açúcar, depois da Revolução?
Não respondeu Bola-de-Neve, firmemente. Não
dispomos de meios para obter açúcar nesta fazenda. Além disso, você não
necessita de açúcar. Mas terá a aveia e o feno que quiser.
E eu ainda poderei usar laços de fita na crina? perguntou
Mimosa.
Camarada explicou Bola-de-Neve essas fitas que você
tanto estima são o distintivo da escravidão. Será que você não compreende que
liberdade vale mais do que laços de fita?
Mimosa sempre concordava, mas não dava a impressão de
estar lá muito convencida.
Muito mais ainda lutaram os porcos para neutralizar as
mentiras espalhadas por Moisés, o corvo doméstico. Moisés, bicho de estimação
do Jones, era um espião linguarudo, mas também hábil na conversa. Afirmava a
existência de uma região misteriosa, Montanha de Açúcar, para onde iam os
animais após a morte. Essa montanha estava situada em algum lugar do céu,
pouco acima das nuvens, segundo dizia Moisés. Na Montanha de Açúcar, os
sete dias da semana eram domingo, o campo floria o ano inteiro, e cresciam
torrões de açúcar bolos de linhaça nas sebes. Os animais detestavam Moisés,
porque vivia contando histórias e não trabalhava, porém alguns acreditavam na
Montanha Açúcar e os porcos tiveram grande trabalho para convencê-los de que
tal lugar não existia.
Os discípulos mais fiéis eram os dois cavalos de tração, Sansão
e Quitéria. Ambos tinham enorme dificuldade em pensar qualquer coisa por si
próprios todavia, aceitando os porcos como professores, absorviam tudo quanto
lhes era dito e passavam adiante para os outros animais, por simples repetição.
Nunca deixavam de comparecer aos encontros secretos no celeiro e davam o tom
para o hino Bichos da Inglaterra, que sempre encerrava as reuniões.
Afinal, a Revolução ocorreu muito mais cedo e mais facilmente
do que se esperava. Jones fora, no passado, um patrão duro, porém eficiente.
Agora estava em decadência. Desestimulado com a perda de dinheiro numa ação
judicial, dera para beber bastante além do conveniente. As vezes passava dias
inteiros recostado em sua cadeira de braços, na cozinha, lendo os jornais,
bebendo e dando a Moisés cascas de pão molhadas na cerveja. Seus peões
eram vadios e desonestos, o campo estava coberto de erva daninha, os galpões
necessitavam de telhas novas, as cercas estavam abandonadas e os animais
andavam mal alimentados.
Junho chegou, e o feno estava quase pronto para o corte. No dia
23 de junho, um sábado, Jones foi a Willingdon e bebeu tanto no Leão Vermelho,
que só regressou ao meio-dia de domingo. Os homens ordenharam as vacas de
manhã cedo e saíram para caçar lebres, sem se preocuparem com a alimentação
dos animais. Ao voltar, Jones foi dormir no sofá da sala com o News of the World
sobre o rosto; portanto, ao cair da tarde, os animais ainda não haviam comido.
Aquilo foi insuportável. Uma das vacas rebentou a chifradas a porta do depósito e
os bichos avançaram sobre o alimento. Nesse momento Jones acordou. Num
instante, ele e seus homens estavam no depósito com os chicotes na mão,
batendo a torto e a direito. Isso ultrapassou a tudo quanto os animais famintos
podiam suportar. De comum acordo, muito embora nada tivesse sido
anteriormente planejado, lançaram-se sobre seus verdugos. Jones e os homens
viram-se de repente marrados e escoiceados por todos os lados. A situação lhes
fugira ao controle. Jamais haviam visto os animais portarem-se daquela maneira,
e a súbita revolta de criaturas a quem estavam acostumados a surrar e maltratar
à vontade, apavorou-os. Em poucos instantes desistiram de defender-se e deram
o fora. Um minuto depois, os cinco voavam pela trilha rumo à estrada principal,
com os bichos a persegui-los triunfantes.
A mulher de Jones olhou pela janela do quarto, viu o que
acontecia, reuniu às pressas alguns haveres dentro de uma bolsa de pano e
escapuliu da granja por outro caminho. Moisés levantou vôo do poleiro e bateu
asas atrás dela, grasnando ruidosamente. Enquanto isso, os bichos haviam
posto Jones e os peões para fora da granja, fechando atrás deles a porteira das
cinco barras. E assim, antes de perceberem o que sucedera, a Revolução estava
feita. Jones fora expulso e a Granja do Solar era deles.
Durante os primeiros cinco minutos, os animais mal puderam
acreditar na sorte. Seu primeiro ato foi galopar pelos limites da granja, como
para verificar se nenhum ser humano ficara escondido; depois correram de volta
às casas da granja, para varrer os últimos vestígios do odiado império de Jones.
O galpão dos arreios, no fundo dos estábulos, foi arrombado; freios, argolas de
nariz, correntes de cachorro, as cruéis facas com que Jones castrava os porcos
e os cordeiros, foi tudo atirado ao fundo do poço. As rédeas, os cabrestos, os
antolhos e os degradantes bornais foram jogados à fogueira que ardia no pátio.
Destino idêntico tiveram os relhos. Os bichos pulavam de contentamento ao
verem os chicotes em chamas. Bola-de-Neve jogou também ao fogo as fitas que
usualmente enfeitavam as crinas e caudas dos cavalos em dias de feira.
Fitas disse ele devem ser consideradas roupas, que são o
distintivo do ser humano. Todos os animais devem andar nus.
Ao ouvir isso, Sansão foi buscar o chapeuzinho de palha que
usava, no verão, para afastar as moscas de suas orelhas, e jogou-o também no
fogo.
Em curto tempo, os bichos destruíram tudo quanto lhes
recordava Jones. Napoleão conduziu-os de volta ao depósito de forragem e
serviu uma ração dupla de cereais para todo mundo, com dois biscoitos para
cada cachorro. Depois cantaram Bichos da Inglaterra de ponta a ponta, sete
vezes, uma atrás da outra, deitaram-se e dormiram como nunca.
Acordaram, porém, de madrugada, como sempre, e, ao
lembrarem-se do glorioso acontecimento da véspera, correram para a pastagem.
A pequena distância havia uma colina que comandava a vista de quase toda a
fazenda. Os animais subiram ao topo e olharam em volta, à luz clara da manhã.
Sim, era deles tudo quanto enxergavam era deles! No êxtase desse
pensamento, viraram cambalhotas e saltaram, num arroubo de contentamento.
Molharam-se no orvalho, morderam a deliciosa grama do verão, arrancaram
torrões de terra e aspiraram aquele cheiro delicioso. Depois fizeram um circuito
de inspeção em toda a granja, vistoriando, com muda admiração, a lavoura, o
campo de feno, o pomar, a lagoa e o bosque. Era como se, anteriormente, nunca
tivessem visto aquilo, e mal podiam acreditar: tudo era deles.
Voltaram, então, para as casas da granja e pararam silenciosos
junto à porta da casa-grande. Era deles também, mas sentiram um certo receio
de entrar. Depois de alguns instantes, porém, Bola-de-Neve e Napoleão
forçaram a porta, e os animais entraram, em fila, caminhando com o maior
cuidado para não desarrumar nada. Andaram na ponta dos pés, de um aposento
para o outro, falando baixinho e olhando com certa reverência o luxo inacreditável,
as camas, os colchões de penas, os espelhos, os sofás de crina, o tapete de
Bruxelas, a litografia da Rainha Vitória sobre a lareira da sala. Quando desciam
as escadas, deram pela falta de Mimosa. Voltando, descobriram-na no quarto
principal. Havia apanhado no toucador da Sra. Jones um pedaço de fita azul e
segurava-o contra a espádua, admirando-se no espelho, com trejeitos ridículos.
Repreenderam-na acerbamente e saíram todos. Alguns presuntos, pendurados
na cozinha, foram levados para fora e enterrados; o barril de cerveja da copa foi
rebentado com um coice de Sansão; além disso, nada mais foi tocado na casa.
Ali mesmo foi aprovada por unanimidade a resolução de conservá-la como
museu. Concordaram em que nenhum animal jamais deveria habitá-la.
Os bichos tomaram a refeição matinal e foram outra vez
convocados por Bola-de-Neve e Napoleão.
Camaradas disse Bola-de-Neve seis e quinze, e temos
um longo dia pela frente. Iniciaremos hoje a colheita do feno. Mas antes há um
outro assunto para tratarmos.
Os porcos revelaram que durante os últimos três meses haviam
aprendido a ler e escrever, num velho livro de ortografia dos filhos de Jones, que
fora jogado no lixo. Napoleão mandou buscar latas de tinta preta e branca e
conduziu-os até a porteira das cinco barras que dava para a estrada principal.
Então, Bola-de-Neve (que era quem escrevia melhor) pegou o pincel entre as
juntas da pata, apagou o nome GRANJA DO SOLAR do travessão superior e,
em seu lugar escreveu GRANJA DOS BICHOS. Seria esse o nome da granja
daquele momento em diante. Depois disso, voltaram para as casas da granja;
Bola-de-Neve e Napoleão mandaram buscar uma escada e ordenaram que fosse
encostada à parede do fundo do celeiro grande. Explicaram que, segundo os
estudos que haviam feito nos últimos três meses, era possível resumir os
princípios do Animalismo em Sete Mandamentos. Esses Sete Mandamentos, que
seriam agora escritos na parede, constituiriam a lei inalterável pela qual a
Granja dos Bichos deveria reger sua vida a partir daquele instante, para sempre.
Com alguma dificuldade (pois não é fácil um porco equilibrarse
numa escada de mão), Bola-de-Neve subiu e começou a trabalhar, enquanto
Garganta, alguns degraus abaixo, segurava a lata de tinta. Os Mandamentos
foram escritos na parede alcatroada em grandes letras brancas que podiam ser
lidas a muitos metros de distância.
Eis o que dizia o letreiro:
OS SETE MANDAMENTOS
1. Qualquer coisa que ande sobre duas pernas é inimigo.
2. Qualquer coisa que ande sobre quatro pernas, ou tenha
asas, é amigo.
3. Nenhum animal usará roupas.
4. Nenhum animal dormirá em cama.
5. Nenhum animal beberá álcool.
6. Nenhum animal matará outro animal.
7. Todos os animais são iguais.
Estava tudo muito bem escrito, com exceção da palavra álcool,
que foi escrita álcol, e de um dos esses, que foi desenhado ao contrário. O
conjunto ficou bastante bom, e Bola-de-Neve leu-o em voz alta para os demais.
Todos os animais balançaram a cabeça, de pleno acordo, e os mais vivos
começaram imediatamente a decorar os Mandamentos.
E agora, camaradas disse Bola-de-Neve, deixando cair o
pincel, ao campo de feno! É uma questão de honra realizar a colheita em menos
tempo do que Jones e seus homens...
Nesse momento, porém, as vacas, que já vinham dando sinais
de inquietação, começaram a mugir. Havia vinte e quatro horas que não eram
ordenhadas e estavam com os úberes quase estourando. Depois de alguma
reflexão, os porcos pediram baldes e ordenharam as vacas com relativo êxito,
pois seus cascos adaptavam-se bem à tarefa. Em breve obtinham cinco baldes de
um leite espumante e cremoso, que muitos bichos olharam com considerável
interesse.
Que vamos fazer com esse leite? perguntou alguém.
Jones às vezes misturava um pouco ao nosso farelo disse
uma galinha.
Não se preocupem com o leite, camaradas! gritou
Napoleão, postando-se à frente dos baldes.
Nós trataremos deste assunto. A colheita é mais importante.
O camarada Bola-de-Neve os conduzirá.
Eu seguirei dentro de alguns minutos. Avante, camaradas! O
feno está à espera.
Os animais marcharam rumo ao campo de feno, para o início da
colheita, e quando voltaram, à tardinha, notaram que o leite havia desaparecido.
CAPÍTULO III
E como trabalharam para juntar aquele feno! Mas o esforço foi
recompensado, pois a colheita deu um resultado muito melhor do que esperavam.
Por vezes, a tarefa foi dura; os implementos destinavam-se ao
uso de seres humanos e foi uma enorme desvantagem o fato de nenhum bicho
poder utilizar ferramentas que exigissem a posição em pé sobre as patas
traseiras. Mas os porcos eram tão imaginosos que conseguiram contornar
todas as dificuldades. Os cavalos conheciam cada palmo do terreno e na
realidade sabiam ceifar e raspar muito melhor do que Jones e os empregados,
Os porcos não trabalhavam, propriamente, mas dirigiam e supervisionavam o
trabalho dos outros. Donos de conhecimentos maiores, era natural que
assumissem a liderança. Sansão e Quitéria atrelavam-se à ceifadeira ou à grade
(naturalmente não havia mais necessidade de freios e rédeas) e andavam pelo
campo para lá e para cá, com um porco atrás gritando Eia, camarada! ou A
volta, agora, camarada!, conforme o caso. E cada animal, até os mais modestos,
trabalhou para colher e juntar o feno. Até os patos e as galinhas andavam o dia
inteiro sob o sol, carregando no bico pequeninos feixes de feno. Enfim,
terminaram a colheita dois dias antes do tempo que Jones e seus empregados
normalmente levavam. Mas, além disso, foi a maior colheita que jamais se
realizara ali. Não houve qualquer desperdício; as galinhas e os patos, com sua
vista penetrante, juntaram até o menor talinho. E nenhum animal na granja roubou
sequer uma bocada.
Durante todo aquele verão o trabalho da granja andou como um
relógio. Os bichos, felizes como nunca. Cada bocado de comida constituía um
extremo prazer, agora que a comida era realmente deles, produzida por eles e
para eles, em vez de distribuída em pequenas quantidades por um dono cheio de
má vontade. Ausentes os inúteis parasitas humanos, mais sobrava para cada um.
Havia também mais lazer, muito embora os animais fossem inexperientes nisso.
Encontraram muitas dificuldades por exemplo, no fim do ano, quando
colheram os cereais, foram obrigados a pisá-los, à moda antiga, e soprar as
cascas, pois a granja não possuía uma debulhadeira mas os porcos, com a
inteligência, e Sansão, com seus músculos fantásticos, sobrepujavam-nas.
Sansão era a admiração de todos. Já era trabalhador no tempo de Jones; agora,
como que valia por três. Dias houve em que todo trabalho da granja parecia
recair sobre seus fortes ombros. Da manhã à noite lá estava ele, puxando e
empurrando, sempre, no lugar onde o trabalho era mais pesado. Fizera um trato
com um dos galos para ser chamado meia hora mais cedo que os demais, todas
as manhãs, e empregava esse tempo em trabalho voluntário no que parecesse
mais necessário. Sua solução para cada problema, para cada contratempo, era
Trabalharei mais ainda, frase que adotara como seu lema particular.
Cada qual trabalhava de acordo com sua capacidade. As
galinhas e os patos, por exemplo, economizaram cinco baldes de trigo, na
colheita, juntando os grãos extraviados. Ninguém roubava, ninguém resmungava
a respeito das rações. A discórdia, as mordidas, o ciúme, coisas normais nos
velhos tempos, tinham quase desaparecido. Ninguém se esquivava ao trabalho
ou quase ninguém. Ë bem verdade que Mimosa não gostava de levantar cedo
e costumava abandonar o trabalho antes dos demais, sob o pretexto de estar com
uma pedra encravada no casco. E o comportamento do gato era um tanto
estranho. Em seguida notou-se que ele nunca podia ser encontrado quando
havia trabalho por fazer. Desaparecia durante várias horas consecutivas e voltava
a aparecer à hora das refeições, ou à tardinha, após o fim dos trabalhos, como se
nada houvesse acontecido. Apresentava, porém, desculpas tão boas e rosnava de
maneira tão carinhosa, que era impossível não crer em suas boas intenções. O
velho Benjamim, o burro, nada mudara, após a Revolução. Executava sua tarefa
da mesma forma obstinadamente lenta com que o fazia nos tempos de Jones.
Não se esquivava ao trabalho normal, mas nunca era voluntário para
extraordinários. Sobre a Revolução e seus resultados, não emitia opinião.
Quando lhe perguntavam se não era mais feliz, agora que Jones se havia ido,
respondia apenas Os burros vivem muito tempo. Nenhum de vocês jamais viu um
burro morto, e os outros tinham que contentar-se com essa obscura resposta.
Aos domingos, não se trabalhava. A refeição da manhã era uma
hora mais tarde e, depois dela, havia uma cerimônia que se realizava todas as
semanas, indefectivelmente. Começava com o hasteamento da bandeira. Bola-de-
Neve achara, no depósito, uma velha toalha verde de mesa e pintara no centro,
em branco, um chifre e uma ferradura. Essa era bandeira que subia ao topo do
mastro todos os domingos pela manhã. O verde da bandeira, explicava Bola-de-
Neve, representava os verdes campos da Inglaterra, ao passo que o chifre e a
ferradura simbolizavam a futura República dos Bichos, cujo advento teria lugar
no dia em que o gênero humano, enfim, desaparecesse. Após o hasteamento da
bandeira, iam todos ao grande celeiro, para assistir a uma assembléia geral
conhecida como a Reunião. Lá planejavam o trabalho da semana seguinte e
discutiam as resoluções. Estas eram sempre apresentadas pelos porcos. Os
outros animais aprenderam a votar, mas nunca conseguiram imaginar uma
resolução por conta própria. Bola-de-Neve e Napoleão eram sempre mais ativos
nos debates. Notou-se, porém, que dois nunca estavam de acordo: qualquer
sugestão de um podia contar, na certa, com a oposição do outro.
Mesmo quando, se resolveu coisa que, em si, não podia
sofrer a objeção de ninguém que o potreiro situado além do pomar seria
reservado para os animais aposentados, houve uma agitada discussão a respeito
da idade de aposentadoria para cada classe de animal. A Reunião era encerrada
sempre com o hino Bichos da Inglaterra, e a tarde destinava-se à recreação.
Os porcos reservaram o depósito de ferramentas para sede da
direção. Ali, à noite, estudavam mecânica, carpintaria e outras artes necessárias,
em livros trazidos da casa-grande. Bola-de-Neve ocupava-se também da
organização dos outros bichos por meio dos chamados Comitês de Animais.
Formou o Comitê da Produção de Ovos, para as galinhas; a Liga das Caudas
Limpas, para as vacas; o Comitê de Reeducação dos Animais Selvagens (cujo
objetivo era domesticar os ratos e os coelhos); o Movimento Pró Mais Branca,
que congregava as ovelhas; e outros mais, além da criação de classes para
ensinar a ler escrever. No conjunto, esses projetos foram um fracasso. A
tentativa de domesticar as criaturas selvagens, por exemplo, falhou em pouco
tempo. Elas continuaram a portar-se como dantes, e simplesmente tiravam
vantagem do fato de serem tratadas com generosidade. O gato ingressou no
Comitê de Reeducação e por algum tempo andou muito ativo. Um dia foi visto,
sentado num telhado, a doutrinar alguns pardais pousados pouco além do seu
alcance. Dizia-lhes que todos os animais agora eram camaradas e qualquer
pardal que o desejasse poderia vir pousar na sua mão; mas os pardais
preferiram ficar de longe.
As classes de ler e escrever, ao contrário, constituíram enorme
sucesso. Já no outono quase todos os bichos estavam, uns mais, outros menos,
alfabetizados.
Os porcos já liam e escreviam muito bem. Os cachorros
aprenderam a ler razoavelmente, porém se interessavam pela leitura de nada
além dos Sete Mandamentos. Maricota, a cabra, lia um pouco melhor que os
cachorros e costumava ler para os demais, à noite, os pedaços de jornal que
achava no lixo. Benjamim sabia ler tão bem quanto os porcos, mas não exercia
sua faculdade. Ao que sabia costumava dizer nada havia que valesse a
pena ler. Quitéria aprendeu todo o alfabeto, mas não conseguia juntar as letras.
Sansão não foi capaz de ir além da letra D. Desenhava na areia, com a pata, as
letras A, B, C, D, e ficava olhando, com as orelhas murchas, às vezes sacudindo
o topete, tentando com todas as suas forças lembrar-se do que vinha depois,
inutilmente. É verdade que em várias ocasiões aprendeu E, F, G, H, mas ao
consegui-lo, descobria sempre que havia esquecido A, B, C e D. Afinal, decidiu
contentar-se com as quatro primeiras letras e costumava escrevê-las uma ou
duas vezes por dia, a fim de refrescar a memória. Mimosa recusou-se a
aprender mais do que as seis letras que compunham seu nome. Formava-as,
bem certinhas, com pedaços de ramos, enfeitava o conjunto com uma ou duas
flores e ficava andando à volta, a admirá-las.
Nenhum dos outros animais da granja chegou além da letra A.
Notou-se também que os mais estúpidos, tais como as ovelhas, as galinhas e os
patos, eram incapazes de aprender de cor os Sete Mandamentos. Depois de
muito pensar, Bola-de-Neve declarou que, na verdade, os Sete Mandamentos
podiam ser condensados numa única máxima, que era: Quatro pernas bom,
duas pernas ruim. Aí se continha segundo disse ele, o princípio essencial do
Animalismo. Quem o seguisse firmemente, estaria a salvo das influências
humanas. A princípio, os pássaros fizeram objeção, pois lhes parecia que
estavam no caso das duas pernas, porém Bola-de-Neve provou que tal não
acontecia:
A asa de uma ave, camaradas, é um órgão de propulsão e
não de manipulação. Deveria ser olhada mais como uma perna. O que distingue
o Homem é a mão, o instrumento com que perpetra toda a sua maldade.
As aves não compreenderam as palavras de Bola-de-Neve, mas
aceitaram a explicação, e os bichos mais modestos dedicaram-se a aprender de
cor a nova máxima, QUATRO PERNAS BOM, DUAS PERNAS RUIM, e que foi
escrita na parede do fundo do celeiro, acima dos Sete Mandamentos e com letras
bem maiores. Depois que conseguiram decorá-la, as ovelhas tomaram-se de
uma enorme predileção por essa máxima, e freqüentemente, deitadas na relva,
ficavam a balir Quatro pernas bom, duas pernas ruim! Quatro pernas bom,
duas pernas ruim! durante horas a fio.
Napoleão não tomou interesse algum pelos comitês de Bola-de-
Neve. Dizia que a educação dos jovens era mais importante do que qualquer
coisa em favor dos adultos. Aconteceu que Lulu e Ferrabrás deram cria, logo
após a colheita de feno, a nove robustos cachorrinhos. Tão logo foram
desmamados, Napoleão tirou-os de suas mães dizendo que ele próprio se
responsabilizaria por sua educação. Levou-os para um sótão que só podia ser
atingido pela escada do depósito, e os manteve em tal reclusão que o resto da
fazenda logo se esqueceu de sua existência.
O mistério do leite pronto se esclareceu. Era misturado à
comida dos porcos. As maçãs estavam amadurecendo e a grama do pomar
cobria-se de frutas derrubadas pelo vento. Os bichos tinham como certo que as
frutas deveriam ser distribuídas eqüitativamente; certo dia, porém, chegou a
ordem para que todas as frutas caídas fossem recolhidas e levadas ao depósito
das ferramentas, para consumo dos porcos. Alguns bichos murmuraram a
respeito, mas foi inútil. Os porcos estavam todos de acordo sobre esse ponto, até
mesmo Bola-de-Neve e Napoleão. Garganta foi enviado aos outros, para dar
explicações.
Camaradas! gritou. Não imaginais, suponho, que nós,
os porcos, fazemos isso por espírito de egoísmo e privilégio. Muitos de nós até
nem gostamos de leite e de maçã. Eu, por exemplo, não gosto. Nosso único
objetivo ao ingerir essas coisas é preservar nossa saúde. O leite e a maçã (está
provado pela Ciência, camaradas) contêm substâncias absolutamente
necessárias à saúde dos porcos. Nós, os porcos, somos trabalhadores
intelectuais. A organização e a direção desta granja repousam sobre nós. Dia e
noite velamos por vosso bem-estar. É por vossa causa que bebemos aquele leite
e comemos aquelas maçãs. Sabeis o que sucederia se os porcos falhassem em
sua missão? Jones voltaria! Jones voltaria! Com toda certeza, camaradas
gritou Garganta, quase suplicante, dando pulinhos de um lado para outro e
sacudindo o rabicho com toda certeza, não há dentre vós quem queira a volta
de Jones.
Ora, se algo havia sobre o que todos animais estavam de
acordo, era o fato de nenhum desejar volta de Jones. Quando o assunto lhes foi
posto sob essa luz, não tiveram mais o que dizer. A importância de manter a boa
saúde dos porcos tornou-se óbvia. Foi, portanto, resolvido sem mais discussões
que o leite e as maçãs caídas (bem como toda colheita de maçãs, quando
amadurecessem) seriam reservados para os porcos.
CAPÍTULO IV
Pelo fim do verão, a notícia do que sucedia na Granja dos
Bichos já se espalhara pelo condado. Todos os dias, Bola-de-Neve e Napoleão
enviavam formações de pombos com instrução de misturar-se aos animais das
granjas vizinhas, contar-lhes a história da Revolução e ensinar-lhes a melodia
de Bichos da Inglaterra.
Jones passava a maior parte desse tempo no Leão Vermelho,
em Willingdon, queixando-se, a quem quisesse ouvi-lo, da monstruosa injustiça
que sofrera ao ser expulso de sua granja por uma súcia de animais imprestáveis.
Os outros granjeiros eram lhe simpáticos, em princípio, mas inicialmente não lhe
deram muita ajuda. No fundo, cada um imaginava secretamente alguma forma de
tirar vantagem do infortúnio de Jones. Era uma sorte que os proprietários das
granjas adjacentes à dos bichos estivessem permanentemente em más relações.
Uma delas, chamada Foxwood, era uma granja grande, abandonada e antiquada,
coberta de mato, com as pastagens cansadas e as cercas caindo.
O proprietário, Sr. Pilkington, era um sujeito indolente, granjeiro
que passava a maior parte do seu tempo caçando ou pescando, conforme a
estação. A outra granja, chamada Pinchfield, era menor e mais bem tratada. Seu
proprietário era o Sr. Frederick, homem rude e sagaz, permanentemente
envolvido em processos na justiça e com a reputação de levar a cabo barganhas
muito difíceis. Os dois se hostilizavam tanto que lhes era sumamente difícil
chegar a qualquer acordo, mesmo em defesa de seus próprios interesses.
Todavia, ambos estavam assustados com a Revolução na
Granja dos Bichos e desejosos de prevenir que seus próprios animais tomassem
maior conhecimento do assunto. De início, acharam graça na idéia de bichos
gerirem por si próprios uma granja. O caso todo estaria acabado numa
quinzena, diziam. E diziam também que os animais da Granja do Solar
(insistiam em chamá-la Granja do Solar; não admitiam o nome Granja dos
Bichos) estavam lutando entre si e não tardariam a definhar até morrer. Como o
tempo passava e os animais evidentemente não definhavam, Frederick e
Pilkington mudaram de tom e começaram então a falar nas terríveis
perversidades que estavam ocorrendo na Granja dos Bichos. Comentavam que
os animais praticavam o canibalismo, torturavam uns aos outros com ferraduras
ao rubro e tinham suas fêmeas em comum. Isso era o que advinha do desrespeito
às leis da Natureza, diziam Frederick e Pilkington.
Entretanto, nunca ninguém acreditou nessas histórias. Boatos
de um sítio maravilhoso, de onde haviam sido expulsos os seres humanos e onde
os bichos tomavam conta dos próprios negócios, continuavam a circular, em
formas vagas e desfiguradas, e durante todo aquele ano uma onda de revolta
percorreu a região. Bois que sempre haviam sido tratáveis, repentinamente se
tornaram selvagens, as ovelhas derrubavam cercas e comiam o trevo, as vacas
davam coices nos baldes, os cavalos de salto refugavam os obstáculos, jogando
os cavaleiros do outro lado. Sobretudo, a melodia e mesmo a letra de Bichos da
Inglaterra tornavam-se conhecidas em toda parte. Espalhavam-se com espantosa
rapidez. Os humanos não podiam conter a raiva ao ouvirem essa canção, embora
quisessem encará-la como simplesmente ridícula. Não conseguiam
compreender, diziam, que mesmo animais chegassem ao ponto de cantar aquela
porcaria. O bicho que fosse apanhado a cantá-la, seria chicoteado. Ainda assim,
a canção era irreprimível. Os melros cantavam-na pousados nas cercas, as
pombas arrulhavam-na nos olmeiros, e ela aparecia nas marteladas dos ferreiros
e no bimbalhar dos sinos das igrejas. Ao ouvirem-na, os seres humanos tremiam
secretamente ante aquela mensagem que previa sua desgraça
No início de outubro, quando o trigo já fora colhido, amontoado,
e em parte até debulhado, uma revoada de pombos chegou em turbilhão e pousou
no pátio da Granja dos Bichos, presa de grande excitação. Jones e todos os seus
homens, mais meia dúzia de outros homens de Foxwood e Pinchfield, haviam
penetrado pela porteira das cinco barras e vinham subindo a trilha que conduzia
à fazenda. Todos armados de bastões, exceto Jones, que marchava à frente com
uma espingarda na mão. Era, evidentemente, uma tentativa de recuperar a granja
Há muito isso era esperado, e os preparativos estavam feitos.
Bola-de-Neve, que estudara um velho livro sobre as campanhas de Júlio César,
encontrado na casa-grande, estava encarregado das operações defensivas.
Rapidamente deu suas ordens, e em pouco tempo cada animal estava em seu
posto.
Quando os homens chegaram perto das casas, Bola-de-Neve
lançou o primeiro ataque. Os pombos, em número de trinta e cinco, voaram por
cima dos homens e defecaram no ar sobre eles; enquanto os homens
atrapalhavam-se com isso. Os gansos, até então escondidos nas sebes,
avançaram e bicaram-lhes as pernas energicamente Mas isso era apenas uma
pequena manobra de escaramuça, destinada a criar confusão, e os homens
facilmente espantaram os gansos com os bastões Então, Bola-de-Neve lançou
sua segunda linha de ataque. Maricota, Benjamim e as ovelhas, com Bola-de-
Neve à frente, arremeteram sobre os homens, marrando, mordendo e
escoiceando-os por todos os lados. Novamente, porém, os homens com os
bastões e os coturnos rústicos foram mais fortes; e de repente, a um guincho de
Bola-de-Neve que era o sinal para bater em retirada, todos os bichos volveram a
frente e fugiram para dentro do pátio; através do portão.
Os homens soltaram um brado de triunfo. Viram, tal como
haviam imaginado, seus inimigos em fuga e lançaram-se no encalço,
desordenadamente. Era justamente o que Bola-de-Neve desejava. Tão logo eles
entraram no pátio, os três cavalos, as três vacas e o restante dos porcos, que
estavam emboscados atrás do estábulo, surgiram-lhes de inopino à retaguarda,
cortando a retirada. Bola-de-Neve deu o sinal de carga. Ele próprio correu na
direção de Jones. Vendo-o, Jones levantou a arma e atirou. Os projéteis abriram
riscos sangrentos no dorso de Bola-de-Neve e uma ovelha caiu morta. Sem
titubear um só instante, Bola-de-Neve lançou os seus cem quilos contra as
pernas de Jones. O homem foi jogado sobre um monte de esterco, e a arma
voou-lhe das mãos. Porém, o espetáculo mais terrível, entre tudo era Sansão,
erguendo-se nos posteriores e dando manotaços com seus cascos ferrados,
feito um garanhão. Logo ao primeiro golpe atingiu o crânio de um cavalariço de
Foxwood, prostrando-o sem vida na lama. Ante isso, vários homens largaram os
bastões e tentaram correr. O pânico tomou conta deles, e em poucos momentos
os animais os caçavam em volta do pátio. Foram chifrados, batidos, mordidos e
atropelados. Não houve bicho da granja que não tirasse desforra, cada um à sua
moda. Até o gato, inesperadamente, saltou de um telhado sobre as costas de um
peão, cravando-lhe as unhas no pescoço e fazendo o homem dar um berro de
dor. Em dado momento, desimpedida a saída, os homens conseguiram fugir do
pátio e correram desabaladamente rumo à estrada principal. E assim, poucos
minutos após a invasão, batiam em vergonhosa retirada pelo mesmo caminho da
vinda, com uma multidão de gansos no seu encalço, bicando-lhes as pernas sem
piedade.
Todos os homens haviam fugido, exceto um. No pátio, Sansão
empurrava, com a pata, o cavalariço que jazia de bruços na lama, tentando virálo.
Mas o rapaz não se mexia.
Está morto disse Sansão penalizado. Eu não queria fazer
isso. Esqueci que estava usando ferraduras. Quem acreditará que não fiz de
propósito?
Nada de sentimentalismos, camarada! gritou Bola-de-
Neve, de cujos ferimentos o sangue jorrava. Guerra é guerra. Ser humano
bom ser humano morto.
Eu não desejo tirar a vida de quem quer que seja, nem
mesmo de um ser humano repetiu Sansão com os olhos cheios de lágrimas.
Onde está Mimosa? perguntou alguém.
Mimosa, realmente, havia desaparecido. Por momentos houve
grande alarma. Temeu-se que homens a tivessem ferido, ou mesmo a levado
com eles. Por fim, foi encontrada, em sua própria baia com a cabeça escondida
no feno da manjedoura. Havia fugido no momento do tiro da espingarda. E
quando voltaram, após encontrá-la, foi para descobrir que o cavalariço, que na
verdade havia apenas desmaiado, já voltara a si e desaparecera. Os bichos,
então, tornaram a reunir-se, presas da maior excitação, cada qual narrando suas
façanhas na batalha com a voz mais alta que conseguia. Uma celebração de
improviso realizou-se imediatamente. A bandeira foi hasteada e cantaras Bichos
da Inglaterra muitas vezes, depois a ovelha morta recebeu funerais solenes,
sendo plantado em seu túmulo um ramo de espinheiro. Ao pé do túmulo, Bola-de-
Neve fez um pequeno discurso, pondo em relevo a necessidade de todos os
animais estarem prontos a morrer pela Granja dos Bichos, se necessário.
Os animais decidiram, por unanimidade, criar uma
condecoração militar, a Herói Animal, Primeira Classe, que foi conferida ali
mesmo a Bola-de-Neve e a Sansão. Consistia numa medalha de bronze (era, na
realidade, bronze dos arreios achados no galpão de ferramentas) para ser usada
nos domingos e feriados. Criaram também a Herói Animal, Segunda Classe,
conferida postumamente à ovelha morta.
Houve muita discussão quanto ao nome que seria dado à
batalha. Por fim, foi batizada de Batalha do Estábulo, pois fora o lugar onde se
armara a emboscada. A espingarda de Jones foi encontrada na lama. Como
existisse uma boa quantidade de cartuchos na casa-grande, ficou decidido que
colocariam a espingarda ao pé do mastro, como se fosse uma peça de artilharia,
e dariam uma salva duas vezes ao ano uma no dia 12 de outubro, aniversário
da Batalha do Estábulo, e outra no dia 24 de junho, aniversário da Revolução.
CAPÍTULO V
Com o passar do inverno, Mimosa tornava-se mais e mais
importuna. Todas as manhãs atrasava-se para o trabalho e desculpava-se
dizendo que dormira demais. Queixava-se de dores misteriosas, embora
gozasse de excelente apetite. A qualquer pretexto largava o trabalho e ia para o
açude, à beira do qual permanecia admirando sua própria imagem refletida nas
águas. Corriam também boatos de maior seriedade. Um dia, quando Mimosa
entrou no pátio, toda contente, sacudindo a cauda e mascando um talo de feno,
Quitéria abordou-a.
Mimosa disse ela tenho um assunto muito sério para
falar-lhe. Hoje de manhã eu a vi olhando por cima da sebe que separa a Granja
de Foxwood. Do outro lado estava um dos empregados do Sr. Pilkington. Ele
embora eu estivesse longe, tenho quase certeza de que vi isso falava com
você e fazia festas em seu focinho. Que significa isso, Mimosa?
Ele não fez! Eu não estava! Não é verdade! gritou
Mimosa, agitando-se e escarvando a terra.
Mimosa! Olhe-me nos olhos. Você me dá sua palavra de
honra de que o homem não lhe tocou no focinho?
Não é verdade! repetiu Mimosa, sem olhar Quitéria de
frente; depois, virou-se e galopou para o campo.
Quitéria teve uma idéia. Sem dizer nada a ninguém, foi à baia de
Mimosa e virou a palha com o casco. Ali estavam escondidos um montinho de
torrões de açúcar e vários novelos de fitas de diversas cores.
Três dias mais tarde, Mimosa desapareceu. Durante algumas
semanas ninguém teve notícias de seu paradeiro, até que os pombos trouxeram o
informe de que a haviam visto na parte mais afastada de Willingdon, atrelada a
uma bonita carroça vermelha e preta, em frente a uma estalagem. Um homem
gordo, de rosto vermelho, calças xadrez e polaina, com todo o tipo de
estalajadeiro, dava-lhe pancadinhas no focinho e oferecia-lhe torrões de açúcar.
Seu pêlo fora recentemente rasqueteado e ela usava uma fita escarlate no topete.
Parecia muito satisfeita, segundo disseram os pombos. Os bichos nunca mais
falaram em Mimosa.
Em janeiro, o tempo piorou terrivelmente. A terra dura como
ferro, não permitia o trabalho no campo. Houve muitas reuniões no celeiro
grande, e os porcos passaram ao planejamento dos trabalhos a serem
realizados na estação seguinte. Fora acertado que os porcos, sendo
manifestamente mais inteligentes do que os outros animais, decidiriam todas as
questões referentes à política agrícola da granja, embora suas decisões
devessem ser ratificadas pelo voto da maioria. Essa combinação teria funcionado
muito bem, não fossem as disputas entre Bola-de-Neve e Napoleão. Esses dois
discordavam sobre todos os pontos em que a discordância era possível. Se um
deles propunha o aumento da área de plantio de cevada, podia-se ter certeza de
que o outro proporia uma área maior para o cultivo da aveia, e se um dissesse
que tais e tais terrenos eram ótimos para plantar repolhos, o outro diria que não
prestavam senão para mandioca. Cada um tinha seus seguidores e havia debates
violentos. Nas reuniões, Bola-de-Neve freqüentemente obtinha a maioria, por
seus discursos brilhantes, porém Napoleão era o melhor na cabala de apoio
durante os intervalos. Obtinha êxito especial com as ovelhas. Ultimamente estas
haviam criado o hábito de balir Quatro pernas bom, duas pernas ruim em
ocasiões próprias ou impróprias, e muitas vezes interrompiam a reunião dessa
maneira. Notou-se que mostravam especial disposição de atacar o Quatro
pernas bom, duas pernas ruim, justamente quando Bola-de-Neve chegava a um
momento crucial em seus discursos. Bola-de-Neve estudara atentamente alguns
números atrasados da revista O Agricultor e o Criador de Gado, encontrados na
casa-grande, e andava com a cabeça cheia de planos sobre invenções e
melhoramentos. Falava com grande conhecimento de causa sabre drenagens,
ensilagem, escórias básicas, e havia elaborado um complexo esquema segundo
o qual os bichos evacuariam diretamente no campo, em lugares diferentes cada
dia, para economizar o trabalho do transporte de esterco. Napoleão não criava
projetos próprios, mas dizia com toda calma que os de Bola-de-Neve dariam em
nada e parecia aguardar sua oportunidade. De todas as divergências, porém,
nenhuma foi tão séria como a do moinho de vento.
Não muito longe das casas havia uma colina que era o ponto
mais alto da granja. Depois de realizar uma pesquisa no solo, Bola-de-Neve
declarou ser o local ideal para a construção de um moinho de vento, que poderia
acionar um dínamo e suprir de energia elétrica toda a granja. As baias teriam luz
elétrica e aquecimento no inverno, haveria força para uma serra circular, para
moagem de cereais, para o corte da beterraba e para um sistema de ordenha
elétrica. Os animais nunca tinham sequer ouvido falar nessas coisas (pois a
granja era antiquada e sua aparelhagem das mais primitivas) e escutaram
boquiabertos Bola-de-Neve fazer desfilar como por encanto, ante sua
imaginação, as figuras dos aparelhos mais espetaculares, máquinas que fariam
todo serviço em seu lugar, enquanto eles iriam aproveitar a folga pastando ou
cultivando a mente, por meio da leitura e da conversação.
Em poucas semanas os planos de Bola-de-Neve para o moinho
de vento estavam prontos. Os detalhes mecânicos foram retirados principalmente
de três livros que haviam pertencido ao Sr. Jones Mil Coisas Úteis para Sua
Casa, Seja o Seu Próprio Pedreiro e Eletricidade para Principiantes. Bola-de-
Neve utilizou como estúdio um galpão que antes abrigara incubadoras e cujo
piso era de madeira lisa, própria para desenhar. Lá permanecia horas a fio. Com
os livros abertos sob o peso de uma pedra, e uma barra de giz entre as duas
pontas do casco, andava rapidamente para lá e para cá, traçando linhas e mais
linhas e soltando guinchos de excitação.
Gradualmente, os planos se transformaram numa complicada
massa de manivelas e engrenagens que cobria quase metade do assoalho e que
os outros animais achavam completamente ininteligível, mas impressionante.
Pelo menos uma vez por dia, cada um vinha olhar os desenhos de Bola-de-Neve.
Até as galinhas e os patos apareciam, pisando com grande dificuldade para não
estragar os riscos de giz. Apenas Napoleão permaneceu desinteressado. Haviase
declarado contra o moinho de vento desde o início. Um dia, entretanto, chegou
inesperadamente para examinar os planos. Caminhou pesadamente em volta do
galpão, olhou detidamente cada detalhe do projeto, farejou-o uma ou duas vezes,
depois deteve-se a contemplá-lo por alguns instantes pelo canto dos olhos;
então, inesperadamente, levantou a pata, urinou sobre os planos e caminhou para
fora sem proferir palavra. A granja estava profundamente dividida com respeito
ao moinho de vento. Bola-de-Neve não negava que sua construção resultaria em
uma empresa difícil. Seria necessário quebrar pedras e transformá-las em
paredes; depois, construir as pás; haveria necessidade de dínamos e fios (onde
seriam encontrados, Bola-de-Neve não dizia). Mas afirmava que tudo poderia
ser feito dentro de um ano. Depois disso dizia os bichos economizariam
tanta energia, que seriam necessários apenas. três dias de trabalho por semana.
Napoleão, por outro lado, argumentava que a grande necessidade do momento
era aumentar a produção de alimentos e que morreriam de fome se perdessem
tempo com o moinho de vento. Os animais dividiram-se em duas facções que se
alinhavam sob os slogans: Vote em Bola-de-Neve e na semana de três dias e
Vote em Napoleão e na manjedoura cheia. Benjamim foi o único animal que não
aderiu a lado nenhum. Recusava-se a crer, tanto em que haveria fartura de
alimento, como em que o moinho de vento economizaria trabalho. Moinho ou não
moinho, dizia ele, a vida prosseguiria como sempre fora ou seja, mal.
Além da disputa sobre o moinho de vento, havia o problema da
defesa da granja. Eles bem sabiam que, embora os humanos tivessem sido
derrotados na Batalha do Estábulo, poderiam fazer outra tentativa, mais
reforçada, para retomar a granja e restaurar Jones. Tinham as melhores razões
para tentar, pois a notícia, da derrota, se espalhara pela região e tornara os
animais das granjas vizinhas mais rebeldes do que nunca. Como sempre, Bolade-
Neve e Napoleão não estavam de acordo. Segundo Napoleão o que os
animais deveriam fazer era conseguir armas de fogo e instruir-se no seu
emprego. Bola-de-Neve achava que deveriam enviar mais e mais pombos e
provocar a rebelião entre os bichos das outras granjas. O primeiro argumentava
que, se não fossem capazes de defender-se, estavam destinados à submissão; o
outro alegava que, fomentando revoluções em toda parte, não teriam necessidade
de defender-se. Os animais ouviam Napoleão, depois Bola-de-Neve e não
chegavam à conclusão sobre quem tinha razão; á verdade é que estavam sempre
de acordo com, aquele que falava no momento.
Por fim, chegou o dia em que os planos de Bola-de-Neve
ficaram prontos. Na Reunião do domingo seguinte deveria ser posta em votação
a questão de começar ou não o trabalho no moinho de vento.
Quando os animais se reuniram no grande celeiro, Bola-de-
Neve levantou-se e, embora fosse interrompido de vez em quando pelo balido das
ovelhas, expôs suas razões em favor da construção do moinho de vento. Depois
levantou-se Napoleão para rebater.
Disse calmamente que o moinho de vento era uma tolice, que
não aconselhava ninguém a votar a favor daquilo. Sentou-se de novo; falara
durante trinta segundos, se tanto, e parecia indiferente ao resultado.
Ante isso, Bola-de-Neve pôs-se de pé outra vez, calou a gritos
as ovelhas que começavam a balir de novo e irrompeu num candente apelo em
favor do moinho de vento. Até então, os bichos estavam quase igualmente
divididos em suas simpatias, mas num instante de eloqüência Bola-de-Neve
arrastou a todos. Com sentenças ardentes, pintou um quadro de como poderia
ser a Granja dos Bichos quando o trabalho sórdido fosse sacudido de sobre os
ombros de todos. Sua imaginação ia agora além de moinhos de cereais e
cortadores de nabos. A eletricidade disse ele poderia movimentar
debulhadoras, arados, grades rolos compressores, ceifeiras e atadeiras, além
de fornecer a cada baia sua própria luz, água quente e fria, e um aquecedor
elétrico. Quando parou de falar, não havia dúvidas quanto ao resultado da
votação. Porém, exatamente nesse momento Napoleão levantou-se e, dando uma
estranha olhadela de viés para Bola-de-Neve, soltou um guincho estridente que
ninguém ouvira antes.
Ouviu-se um terrível ladrido lá fora e nove cães enormes,
usando coleiras tachonadas com bronze, entraram latindo no celeiro. Jogaramse
sobre Bola-de-Neve, que saltou do lugar onde estava, mal a tempo de escapar
àquelas presas. Num instante, saiu porta fora com os cães em seu encalço.
Espantados e aterrorizados demais para falar, os bichos amontoaram-se na
porta para observar a caçada. Bola-de-Neve corria pelo campo em direção à
estrada, como só um porco sabe correr, mas os cachorros se aproximavam. De
repente ele caiu e pareceu que o apanhariam. Mas levantou-se outra vez e
correu como um desesperado. Já os cães o alcançavam de novo. Um deles
quase fechou as mandíbulas no rabicho de Bola-de-Neve, que o sacudiu bem na
hora. Aí fez um esforço extremo e, ganhando algumas polegadas, enfiou-se por
um buraco da sebe e sumiu.
Calados e aterrados, os animais voltaram furtivamente para
dentro do celeiro. Logo chegaram os cachorros, latindo. A princípio ninguém
pôde imaginar de onde tinham vindo aquelas criaturas, mas o mistério logo se
aclarou: eram os cachorrinhos que Napoleão havia tomado às mães e criado
secretamente. Embora ainda não tivessem completado o crescimento, já eram
uns cães enormes e mal-encarados como lobos. Permaneceram junto a
Napoleão e notou-se que sacudiam a cauda para ele da mesma maneira como os
outros cachorros costumavam fazer para Jones.
Napoleão, com os cachorros a segui-lo, subiu para o estrado,
de onde o Major fizera seu discurso. Anunciou que daquele momento em diante
terminariam as Reuniões dos domingos de manhã. Eram desnecessárias perdas
de tempo. Para o futuro, todos os problemas relacionados com o funcionamento
da granja seriam resolvidos por uma comissão de porcos, presidida por ele, que
se reuniria em particular e depois comunicaria suas decisões aos demais. Os
animais continuariam a reunir-se aos domingos para saudar a bandeira, cantar
Bichos da Inglaterra e receber as ordens da semana; não haveria debates.
A despeito do estado de choque em que a expulsão de Bola-de-
Neve os deixara, os bichos ficaram desalentados com aquela notícia. Vários
teriam protestado, se conseguissem achar os argumentos. Até Sansão ficou um
tanto perturbado. Murchou as orelhas, sacudiu o topete várias vezes e fez um
esforço tremendo para pôr em ordem as idéias; mas afinal não conseguiu pensar
nada para dizer. Alguns porcos, porém, tinham maior flexibilidade de raciocínio.
Quatro jovens porcos castrados, colocados na primeira fila, soltaram altos
guinchos de protesto e levantaram-se falando a um só tempo. Mas os cachorros,
junto de Napoleão, soltaram um rosnado fundo e ameaçador, e os porcos
calaram-se, sentando-se de novo. Aí estrondaram as ovelhas um formidável
balido de Quatro pernas bom, duas pernas ruim que durou cerca de um quarto
de hora, acabando com qualquer hipótese de discussão. Mais tarde, Garganta
foi mandado percorrer a granja para explicar a nova situação aos demais.
Camaradas disse tenho certeza de que cada animal
compreende o sacrifício que o Camarada Napoleão faz ao tomar sobre seus
ombros mais esse trabalho. Não penseis, camaradas, que a liderança seja um
prazer. Pelo contrário, é uma enorme e pesada responsabilidade. Ninguém mais
que o Camarada Napoleão crê firmemente que todos os bichos são iguais. Feliz
seria ele se pudesse deixar-vos tomar decisões por vossa própria vontade; mas,
às vezes, poderíeis tomar decisões erradas, camaradas; então, onde iríamos
parar? Suponhamos que tivésseis decidido seguir Bola-de-Neve com suas
miragens de moinho de vento logo Bola-de-Neve que, como sabemos, não
passava de um criminoso?
Ele lutou bravamente na Batalha do Estábulo disse
alguém.
Bravura não basta respondeu Garganta.
A lealdade e a obediência são mais importantes. E quanto à
Batalha do Estábulo, acredito, tempo virá em que verificaremos que o papel de
Bola-de-Neve foi um tanto exagerado. Disciplina, camaradas, disciplina férrea!
Este é o lema para os dias que correm. Um passo em falso e o inimigo estará
sobre nós. Por certo, camaradas, não quereis Jones de volta, hem?
Uma vez mais esse argumento era irrespondível. Sem dúvida
alguma, os bichos não desejavam Jones de volta; e se a realização dos debates
do domingo podia ter essa conseqüência, que cessassem os debates. Sansão,
que já tivera tempo de pensar, expressou o sentimento geral: Se é o que diz o
Camarada Napoleão, deve estar certo. E daí por diante adotou a máxima
Napoleão tem sempre razão acrescentando-a ao seu lema particular
Trabalharei mais ainda.
Já com o tempo melhor, iniciou-se a arada da primavera. O
galpão em que Bola-de-Neve desenhara seus planos para o moinho de vento foi
trancado e os desenhos provavelmente apagados. Todos os domingos, às dez
horas, os animais reuniam-se no grande celeiro para receber as ordens da
semana. A caveira do velho Major, já sem carnes, fora desenterrada e colocada
sobre um toco ao pé do mastro, junto à espingarda. Após o hasteamento da
bandeira, os animais deviam desfilar reverentemente perante a caveira, antes de
entrar no celeiro. Já não sentavam todos juntos, como antes. Napoleão, Garganta
e outro porco chamado Mínimo, dono de notável talento para compor canções e
poemas, aboletavam-se sobre a parte fronteira da plataforma, os nove cachorros
em semicírculo ao redor deles e os outros porcos atrás. O restante dos animais
ficava de frente para eles, no chão do celeiro. Napoleão lia as ordens da semana
num áspero estilo militar e, após cantarem uma única vez Bichos da Inglaterra,
os animais se dispersavam.
No terceiro domingo após a expulsão de Bola-de-Neve, os
bichos ficaram um tanto surpresos ao ouvirem Napoleão anunciar que o moinho
de vento seria, afinal de contas, construído. Não deu qualquer explicação sobre o
motivo que o fizera mudar de idéia, apenas alertando os animais de que essa
tarefa extraordinária significaria trabalho muito duro, podendo até ser necessário
reduzir as rações. Os planos, entretanto, haviam, sido elaborados até o último
detalhe. Uma comissão especial de porcos trabalhara neles durante as três
últimas semanas. A construção do moinho de vento, com vários outros
melhoramentos, deveria levar dois anos.
Naquela tarde, Garganta explicou aos outros bichos, em
particular, que Napoleão nunca for a contra a construção do moinho de vento.
Pelo contrário, ele é que advogara a idéia desde o início, e o plano que Bola-de-
Neve havia desenhado no assoalho do galpão das incubadoras fora, na realidade,
roubado de entre os papéis de Napoleão. O moinho de vento, era, em verdade,
criação do próprio Napoleão.
Por que, então perguntou alguém ele tanto falou contra
o moinho?
Garganta olhou, manhoso.
Aí é que estava a esperteza do Camarada Napoleão
disse. Ele fingira ser contra o moinho de vento, apenas como manobra para
livrar-se de Bola-de-Neve, que era um péssimo caráter e uma influência
perniciosa. Agora que Bola-de-Neve saíra do caminho, o plano podia prosseguir
sem sua interferência. Isso era uma coisa chamada tática.
Repetiu inúmeras vezes Tática, camaradas, tática!, saltando à
roda e sacudindo o rabicho com um riso jovial. Os bichos não estavam muito
certos do significado da palavra, mas Garganta falava tão persuasivamente e os
três cachorros que por coincidência estavam com ele rosnavam tão
ameaçadoramente, que aceitaram a explicação sem mais perguntas.
CAPÍTULO VI
Durante o ano inteiro os bichos trabalharam feito escravos. Mas
trabalhavam felizes; não mediam esforços ou sacrifícios, cientes de que tudo
quanto fizessem reverteria em benefício deles próprios e dos de sua espécie,
que estavam por vir, e não em proveito de um bando de preguiçosos e
aproveitadores seres humanos.
Por toda a primavera e o verão, enfrentaram uma semana de
sessenta horas de trabalho e, em agosto, Napoleão fez saber que haveria
trabalho também nos domingos à tarde. Esse trabalho era estritamente
voluntário, porém, o bicho que não aceitasse teria sua ração diminuída pela
metade. Mesmo assim, ficou alguma coisa por fazer. A colheita foi pouco menor
do que a do ano anterior, e duas lavouras que deveriam receber mandioca no
início do verão não foram plantadas por não ter sido possível ará-las a tempo. Era
fácil prever que o inverno seria bastante duro.
A construção do moinho de vento apresentou dificuldades
imprevistas. Havia na granja uma boa pedreira, e grande quantidade de areia e
cimento for a encontrada num depósito, portanto o material para a construção
existia e estava à mão. O problema que os animais não conseguiram resolver, de
inicio, foi o de quebrar as pedras no tamanho desejado. Não parecia haver outra
maneira senão com picaretas e alavancas, coisas que nenhum animal podia
usar, porque não lhes era possível ficar de pé sobre duas patas. Somente após
semanas de trabalho em vão, foi que ocorreu a alguém a idéia certa aproveitar
a gravidade. Pelo leito da pedreira jaziam seixos enormes, demasiado grandes
para serem usados como estavam. Os bichos amarravam cordas em torno das
pedras e, todos juntos, cavalos, vacas, ovelhas, todo animal que fosse capaz de
segurar os cabos até os porcos entravam no grupo, em certos momentos
críticos arrastavam-nas com desesperadora lentidão até o ponto mais elevado
da pedreira, de cuja borda eram derrubadas para despedaçarem-se embaixo. O
transporte das pedras, uma vez quebradas, era relativamente simples. Os
cavalos carregavam-nas em carroças, as ovelhas arrastavam blocos individuais,
até mesmo Maricota e Benjamim atrelaram-se a uma velha charrete e fizeram
sua parte. No fim do verão já haviam acumulado um bom estoque de pedras, e
começou a construção sob a direção dos porcos.
Entretanto, o processo era demorado e laborioso.
Freqüentemente levavam um dia inteiro para arrastar uma pedra das maiores até
o topo da pedreira, e às vezes, atirada pela borda, não quebrava. Nada se teria
feito sem Sansão, cuja força parecia igual à de todos os outros bichos juntos.
Quando a pedra começava a deslizar e os animais gritavam de desespero, ao se
verem arrastados colina abaixo era sempre Sansão que retesava os cabos e
continha a pedra. Vê-lo na faina da subida, palmo a palmo, com a respiração
acelerada, os costados molhados de suor e as pontas dos cascos cravadas no
solo, era coisa que enchia a todos de admiração. Quitéria às vezes
recomendava-lhe que tivesse cuidado e não se esforçasse demais, mas Sansão
não lhe dava ouvidos. Seus dois lemas Trabalharei mais ainda e Napoleão tem
sempre razão pareciam-lhe resolver todos os problemas. Pediu a um dos galos
que o acordasse três quartos de hora mais cedo, pela manhã, ao invés de meia
hora. E nos momentos de folga, coisa que nos últimos tempos não sucedia muito
amiúde, ia sozinho à pedreira, juntava um monte de pedra britada e puxava-o até o
local do moinho de vento, sem ajuda de ninguém.
Os bichos não passaram muito mal aquele inverno, malgrado a
dureza do trabalho. Se não dispunham de mais alimentos do que no tempo de
Jones, também não tinham menos. A vantagem de só terem a si próprios para
alimentar, sem os cinco esbanjadores seres humanos, era tão grande que
compensava bem algumas faltas. E, sob muitos aspectos, seus métodos eram
mais eficientes e econômicos. Certas tarefas, como, por exemplo, a limpeza de
ervas daninhas, podiam ser realizadas com uma perfeição impossível aos seres
humanos. E, como nenhum animal roubava, não houve necessidade de separar as
pastagens das terras aráveis, o que evitou o grande trabalho da construção de
cercas e porteiras. Não obstante, à medida que o verão passava começou a se
fazer sentir alguma escassez, imprevista. Houve falta de óleo de parafina, de
pregos, de corda, de biscoitos para os cachorros e de ferraduras para os
cavalos, coisas que não podiam ser fabricadas na granja. Mais tarde,
faltaram também sementes e adubo artificial, além de vários tipos de ferramentas
e, finalmente, a maquinaria para o moinho de vento. Como obter isso tudo,
ninguém conseguia imaginar.
Um domingo de manhã, quando os bichos se reuniram para
receber as ordens, Napoleão anunciou sua decisão de encetar uma nova política.
A partir daquele dia, a Granja dos Bichos passaria a comerciar comas da
vizinhança; naturalmente, sem qualquer objetivo de lucro, mas com o fito único
de obter algumas mercadorias urgentemente necessárias. As exigências do
moinho de vento deviam sobrepujar tudo mais, disse. Em conseqüência, ele
estava tratando da venda de uma grande meda de feno e de parte da safra de
trigo daquele ano; mais tarde, caso fosse necessário mais dinheiro, este teria de
ser obtido com a venda de ovos, para os quais sempre havia mercado em
Willingdon. As galinhas, disse Napoleão, deveriam agradecer a oportunidade de
oferecer esse sacrifício, como contribuição especial em prol da conservação do
moinho de vento.
Os animais sentiram outra vez uma vaga inquietude. Nunca
realizar quaisquer contatos com seres humanos, nunca fazer comércio, jamais
utilizar dinheiro essas coisas não estavam entre as primeiras resoluções
passadas naquela formidável Reunião inicial, logo após a expulsão de Jones?
Todos se lembravam da aprovação dessas resoluções ou pelo menos
julgavam lembrar-se. Os quatro jovens porcos castrados que haviam protestado
quando Napoleão acabara com as Reuniões, levantaram timidamente a voz, mas
foram logo silenciados por um rosnar terrível dos cachorros. Nesse instante,
como de hábito, as ovelhas estalaram Quatro pernas bom, duas pernas ruim! e
a momentânea impertinência foi abafada. Finalmente, Napoleão levantou a pata
ordenando silêncio e declarou que já havia tomado todas as providências. Não
haveria necessidade de qualquer animal entrar em contato com seres humanos,
coisa que seria da maior inconveniência. Ele pretendia tomar sobre seus ombros
toda essa carga. Um certo Sr. Whymper, que era procurador em Willingdon,
concordara em atuar como intermediário entre a Granja dos Bichos e o mundo
exterior, e viria à granja todas as segundas-feiras pela manhã, a fim de receber
instruções. Napoleão finalizou o discurso com sua exclamação habitual de Viva
a Granja dos Bichos!, e, após cantarem Bichos da Inglaterra, os animais foram
dispensados.
Depois, Garganta percorreu a granja para tranqüilizá-los.
Assegurou-lhes que tal resolução, contra o engajamento no comércio e o uso de
dinheiro, jamais fora aprovada, aliás nem sequer apresentada. Era pura
imaginação e provavelmente tinha origem em mentiras inventadas por Bo1a-de-
Neve. Alguns bichos ainda permaneciam em dúvida, porém Garganta perguntoulhes
astuciosamente: Vocês estão certos de que não sonharam com isso?
Existe algum registro dessa resolução? Está escrita em algum lugar? E uma
vez que, realmente, não existia escrito nada parecido com isso, os animais se
convenceram de seu engano.
Todas as segundas-feiras o Sr. Whymper visitava a granja,
conforme o combinado. Era um homenzinho finório, de suíças crescidas,
procurador de pouca clientela porém suficientemente vivo para perceber, antes
de qualquer outro, que a Granja dos Bichos precisaria de um representante e
que as comissões seriam polpudas. Os bichos olhavam suas idas e vindas com
um certo receio e evitavam-no tanto quanto possível. Apesar disso, ver Napoleão,
de quatro, dando ordens a Whymper, que permanecia em pé sobre duas patas,
era uma coisa que, lhes acariciava o orgulho e parcialmente os reconciliava com
a nova situação. As relações com o gênero humano andavam bem diferentes. Os
humanos não odiavam menos a Granja dos Bichos, agora que ela prosperava; na
realidade, odiavam-na mais do que nunca. Todo ser humano tinha como questão
de fé que a granja iria à bancarrota mais cedo ou mais tarde e, sobretudo, que o
moinho de vento seria um fracasso. Reuniam-se nas estalagens e provavam uns
aos outros, por meio de gráficos e diagramas, que o moinho estava fadado a
desabar e, caso se mantivesse erguido, jamais funcionaria. Não obstante,
mesmo contra a vontade, haviam criado um certo respeito pela eficiência com
que os bichos conduziam os seus assuntos. Sintoma disso foi o fato de
começarem a chamar o sítio de Granja dos Bichos, abandonando a pretensão de
continuarem a chamá-la Granja do Solar. Haviam também acabado com o cartaz
de Jones, que perdera toda esperança de reaver sua granja e fora viver noutro
lugar. Até agora, exceto por intermédio de Whymper, nenhum contato houvera
entre a Granja dos Bichos e o mundo exterior, mas já circulavam insistentes
boatos de que Napoleão estava por chegar a um decisivo acordo de negócios,
ora com Pilkington, de Foxwood, ora com Frederick, de Pinchfield mas nunca,
interessante, com ambos, simultaneamente.
Foi mais ou menos por essa época que os porcos, de repente,
mudaram-se para a casa-grande, onde fixaram residência. Novamente os bichos
julgaram lembrar-se de que havia uma resolução contra isso, aprovada nos
primeiros dias, e novamente Garganta conseguiu convencê-los do contrário. Era
absolutamente necessário que os porcos, disse ele, sendo os cérebros da
granja, tivessem um lugar calmo onde trabalhar. Além disso, viver numa casa era
mais adequado à dignidade do Líder (nos últimos tempos dera para referir-se a
Napoleão pelo título de Líder) do que viver numa simples pocilga. Mesmo
assim, alguns animais se aborreceram ao ouvir dizer que os porcos não só
faziam as refeições na cozinha e utilizavam a sala como local de recreação, mas
ainda dormiam nas camas. Sansão resolveu o assunto com seu Napoleão tem
sempre razão, porém Quitéria, que tinha a impressão de lembrar-se de uma lei
específica contra camas, foi até o fundo do celeiro e tentou decifrar os Sete
Mandamentos que lá estavam escritos. Sentindo-se incapaz de ler mais do que
algumas letras separadamente, foi chamar Maricota.
Maricota pediu ela leia para mim por favor, o Quarto
Mandamento. Não diz qualquer coisa a respeito de nunca dormir em camas?
Com alguma dificuldade, Maricota soletrou o mandamento:
Diz que Nenhum animal dormirá em cama com lençóis.
Interessante, Quitéria não se recordava dessa menção a
lençóis, no Quarto Mandamento. Mas, se estava escrito na parede, devia haver. E
Garganta que por acaso passava nesse momento, acompanhado de dois
cachorros, colocou todo o assunto na perspectiva adequada.
Com que então vocês, camaradas, ouviram dizer que nós, os
porcos, agora dormimos nas camas da casa? E por que não? Vocês não
supunham, por certo, que houvesse uma lei contra camas, não é? A cama é
meramente o lugar onde se dorme. Vendo bem, um monte de palha no estábulo é
uma cama. A lei era contra os lençóis, que são uma invenção humana. Nós
retiramos os lençóis das camas da casa e dormimos entre cobertores.
Confortáveis, lá isso são! Porém não mais do que necessitamos, posso afirmarlhes,
camaradas, com todo o trabalho intelectual que atualmente recai sobre nós.
Vocês não seriam capazes de negar-nos o repouso, camaradas, seriam? Vocês
não desejariam ver-nos tão cansados que não pudéssemos cumprir nossa
missão, não? Será que alguém quer Jones de volta?
Os animais tranqüilizaram-no a esse respeito e não se falou
mais no fato de os porcos dormirem nas camas da casa. E quando se anunciou,
alguns dias depois, que os porcos passariam a levantar-se, de manhã, uma hora
mais tarde do que os outros bichos, ninguém se queixou disso também.
Ao chegar o outono, os animais andavam cansados, mas felizes.
Haviam tido um ano difícil, e após a venda de uma parte da safra de feno e de
trigo, os estoques para o inverno não eram lá muito abundantes, mas o moinho
de vento compensava tudo. Já estava quase pela metade. Após a colheita houve
um período de tempo bom e os bichos trabalharam mais do que nunca, satisfeitos
com a tarefa de andarem para lá e para cá puxando blocos de pedras, desde que
com isso conseguissem fazer a parede subir mais alguns centímetros. Sansão
chegava a trabalhar de noite, uma hora ou duas, por sua conta, à luz da lua. Nas
horas de folga os animais passeavam em volta do moinho inacabado; admirando
a solidez e a verticalidade de suas paredes, maravilhados com o fato de terem
sido capazes de construir algo tão imponente. Somente o velho Benjamim se
recusava a entusiasmar-se com o moinho de vento, embora, como sempre, não
fizesse outro comentário além do enigma de que os burros vivem muito tempo.
Novembro chegou, com fortes ventos de sudoeste. Foi preciso
interromper a construção, pois o tempo estava úmido demais para a mistura de
cimento. Finalmente, houve uma noite em que a tormenta foi tão forte que os
galpões da granja tremeram na base e várias telhas do celeiro foram
arrancadas. As galinhas acordaram cacarejando aterrorizadas, pois haviam
sonhado, todas ao mesmo tempo, com o barulho de um tiro a distância. Pela
manhã, ao saírem os animais de suas baias, deram com o mastro caído no chão
e viram o olmeiro do pomar desgalhado como se fosse um rabanete. Mal haviam
notado isso quando soltaram um grito lancinante de desespero. Visão terrível se
apresentava aos seus olhos: o moinho de vento estava em ruínas.
Correram todos para o local. Napoleão, que raras vezes
abandonava seu passo normal à frente de todos, correu também. Sim, ali estava o
moinho, o fruto de todas as suas lutas, rebaixado ao nível dos alicerces; e as
pedras, que tão laboriosamente haviam levantado, espalhadas pelas redondezas.
Impossível falar, de início; ali ficaram olhando tristemente à desordem das pedras
caídas. Napoleão andava 1entamente de um lado para outro, em silêncio,
ocasionalmente farejando o chão, aqui e ali. Seu rabicho se esticava e se
sacudia energicamente, para lá e para cá, num sinal de febril atividade mental.
De repente estacou, como se tivesse chegado a uma conclusão.
Camaradas disse lentamente quem é o responsável
por isto? Sabem quem foi o inimigo que, na calada da noite, destruiu nosso
moinho de vento? BOLA-DE-NEVE! rugiu violentamente com voz de trovão.
Bola-de-Neve foi o autor disto! Com rematada maldade, pensando em destruir
nossos planos e vingar-se de sua ignominiosa expulsão, esse traidor penetrou
até aqui, sob o manto da escuridão, e destruiu nosso labor de quase um ano.
Camaradas, neste local e neste momento, pronuncio a sentença de morte para
Bola-de-Neve. Uma Herói Animal, Segunda Classe e meio balde de maçãs ao
animal que lhe fizer justiça. Um balde inteiro a quem o capturar vivo!
Os animais ficaram chocadíssimos ao saberem que mesmo
Bola-de-Neve fosse capaz de uma coisa daquela. Subiu ao céu um brado de
indignação e cada um pôs-se a pensar num modo de apanhar Bola-de-Neve, se
algum dia ousasse voltar. Quase ao mesmo tempo, descobriram-se as pegadas
de um porco a pequena distância da colina. Embora marcassem apenas alguns
metros, pareciam dirigir-se a um buraco da sebe. Napoleão cheirou-as
profundamente e declarou serem de Bola-de-Neve. Na sua opinião, Bola-de-
Neve provavelmente viera da Granja de Foxwood. Não percamos tempo,
camaradas! bradou Napoleão, depois de examinar detidamente as pegadas.
Temos muito trabalho pela frente. Hoje mesmo, de manhã, recomeçamos a
construção do moinho de vento e trabalharemos por todo o inverno, com sol ou
com chuva. Mostraremos a esse traidor miserável que ele não pode desfazer
nosso traba1ho assim tão facilmente. Lembrem-se, camaradas, não deve haver
modificações em nossos planos: serão cumpridas à risca. Para a frente,
camaradas! Viva o moinho de vento! Viva a Granja dos Bichos!
CAPÍTULO VII
Aquele inverno foi horrível. Às tempestades seguiram-se o
granizo e as nevadas, depois o gelo, que somente se desfez em meados de
fevereiro. Os bichos fizeram todo o possível na reconstrução do moinho de vento,
conscientes de que o mundo tinha os olhos sobre eles e de que os invejosos
seres humanos vibrariam de contentamento se o moinho não fosse concluído a
tempo.
Apesar de tudo, os humanos recusaram-se a crer que Bola-de-
Neve tivesse destruído o moinho de vento: afirmavam que as paredes caíram
porque eram finas demais. Os animais sabiam não ser essa a causa. Mesmo
assim, deliberaram desta vez construir as paredes com noventa centímetros de
largura, ao invés de quarenta e cinco, como inicialmente, o que exigia muito
mais pedra. Durante longo tempo a pedreira esteve coberta de neve e foi
impossível fazer qualquer coisa. Algum progresso se conseguiu depois, no
tempo gelado e seco que se seguiu, mas foi um trabalho cruel, e os animais já
não o realizavam com a mesma esperança de antes. Andavam sempre com frio e,
normalmente, com fome. Somente Sansão e Quitéria nunca desanimavam.
Garganta fazia excelentes discursos sobre a alegria e a dignidade do trabalho,
mas os animais encontravam maior inspiração na força de Sansão e no seu
indefectível brado Trabalharei mais ainda!
Em janeiro, a comida diminuiu. A ração de milho foi
drasticamente reduzida e anunciou-se que uma ração extra de batata seria
entregue em seu lugar. Descobriu-se então que a maior parte da colheita de
batatas estava congelada nas pilhas, não suficientemente protegidas. Moles e
descoradas, poucas continuavam comíveis. Durante dias seguidos, os bichos
não tiveram senão palha e beterraba pare comer. O espectro da fome surgia à
sua frente.
Era imprescindível ocultar esse fato ao restante do mundo.
Encorajados pelo colapso do moinho de vento, os humanos andavam renovando
mentiras sobre a Granja dos Bichos. Mais uma vez se dizia que os bichos
morriam de fome e doenças, que brigavam continuamente entre si e que haviam
descambado para o canibalismo e o infanticídio. Napoleão bem sabia dos maus
resultados que poderiam advir, caso a verdadeira situação alimentar da granja
fosse conhecida, e resolveu utilizar o Sr. Whymper para divulgar uma impressão
contrária. Até então, os animais tinham tido muito pouco ou nenhum contato com
Whymper, em suas visitas semanais: agora, entretanto, alguns bichos
selecionados, principalmente ovelhas, foram instruídos para comentarem,
casualmente, mas de forma bem audível, o fato de terem sido aumentadas as
rações. Em complemento, Napoleão deu ordens para que as tulhas do depósito,
que estavam quase vazias, fossem recheadas de areia quase até a boca, depois
completadas com cereais e farinha. A um pretexto qualquer Whymper foi
conduzido através do depósito e pôde dar uma olhadela nas tulhas. Foi enganado
e continuou a dizer lá fora que, absolutamente, não havia falta de alimento na
Granja dos Bichos.
Não obstante, no fim de janeiro, tornou-se positiva a
necessidade de conseguir-se mais cereais em algum lugar. Naqueles dias
Napoleão raramente apareceu em público, passando o tempo todo no casarão,
guardado por um cão mal-encarado em cada porta. Quando surgiu outra vez, foi
de maneira cerimoniosa, com uma escolta de seis cachorros que o cercavam de
perto e rosnavam caso alguém se achegasse demais. Freqüentemente não
aparecia, nem sequer aos domingos de manhã, enviando suas ordens por
intermédio de outro porco, de preferência Garganta.
Certa manhã de domingo, Garganta anunciou que as galinhas,
que recentemente haviam começado a pôr, deveriam entregar-lhe seus ovos,
pois Napoleão assinara, por intermédio de Whymper, um contrato de
fornecimento de quatrocentos ovos por semana. O preço destes pagaria, em
cereais e farinha, o bastante para manter a granja até que chegasse o verão e as
condições do tempo melhorassem.
Ao ouvirem isso, as galinhas responderam com um terrível
cacarejo. Já haviam sido alertadas sobre essa possibilidade, mas não pensavam
que viesse a tornar-se realidade. Como havia pouco preparavam suas
ninhadas de ovos para a chocagem da primavera, protestaram dizendo que
tomar-lhes os ovos, agora, era um crime. Pela primeira vez, desde a expulsão de
Jones, aconteceu algo parecido com uma rebelião. Lideradas por três jovens
frangas Minorca, as galinhas realizaram uma ação visando a contrariar os
desejos de Napoleão. O método usado foi voar para os caibros do telhado é dali
por os ovos, que vinham despedaçar-se no chão. Napoleão agiu rápida e
implacavelmente. Cortou a ração das galinhas e decretou que o bicho que fosse
apanhado dando a elas um grão sequer de alimento seria condenado à morte. Os
cachorros fiscalizavam a execução da ordem. As galinhas resistiram por cinco
dias, depois capitu1aram e voltaram para os ninhos. Nove haviam morrido. Seus
corpos foram enterrados no pomar e, segundo se disse, a causa da morte fora
coccidiose. Whynper nada ouviu sobre esse caso, e os ovos foram entregues
pontualmente, vindo um caminhão semanalmente buscá-los.
Entrementes, não se falava mais em Bola-de-Neve. Havia
rumores de que estaria homiziado em uma das granjas vizinhas, Foxwood ou
Pinchfield. Nessa época, Napoleão andava em termos ligeiramente melhores
com os outros granjeiros É que havia no pátio várias pilhas de madeira, feitas
dez anos antes, por ocasião da derrubada de um bosque de faias Como a
madeira já estava bem seca, Whymper aconselhara Napoleão a vendê-la, e tanto
Pilkington como Frederick desejavam comprá-la Napoleão hesitava entre os dois,
sem decidir-se Notou-se que toda vez que parecia ter chegado a um acordo com
Frederick, surgia o boato de que Bola-de-Neve estava escondido em Foxwood,
ao passo que, quando se inclinava para Pilkington, Bola-de-Neve deveria andar
em Pinchfield.
Subitamente, no início da primavera, descobriu-se um fato
alarmante. Bola-de-Neve estava freqüentando a granja à noite, secretamente! Os
bichos ficaram tão preocupados que mal podiam dormir em seus estábulos.
Todas as noites, dizia-se, ele se esgueirava nas sombras e perpetrava um sem
número de maldades Roubava milho, entornava baldes de leite, quebrava ovos,
esmagava os viveiros de sementes e roía o córtex das árvores frutíferas. Sempre
que algo errado aparecia, o culpado era Bola-de-Neve. Uma janela quebrada,
um dreno entupido, e alguém com certeza diria que Bola-de-Neve viera à noite e
fizera aquilo; quando se perdeu a chave do depósito, toda a granja se convenceu
de que Bola-de-Neve a jogara no fundo do poço. Interessante foi continuarem a
acreditar, mesmo depois que a chave perdida foi encontrada sob um saco de
farinha. As vacas declararam unanimemente que Bola-de-Neve entrara em suas
baias e as havia ordenhado durante o sono. Os ratos, por incomodarem muito
durante o inverno, foram taxados de aliados de Bola-de-Neve.
Napoleão decretou uma ampla investigação sobre as atividades
de Bola-de-Neve. Com seus cachorros em posição de alerta, saiu e fez uma
cuidadosa inspeção nos galpões da fazenda, com os outros animais a segui-lo a
uma distância respeitosa. A pequenos intervalos, Napoleão parava e farejava o
chão em busca de sinais de Bola-de-Neve que, segundo disse, podia perceber
pelo faro. Cheirou cada canto, no celeiro, no estábulo, nos galinheiros, na horta,
encontrando vestígios de Bola-de-Neve em quase toda parte. Invariavelmente
encostava o focinho no chão, puxava algumas cheiradas profundas e exclamava
numa voz terrível: Bola-de-Neve! Andou por aqui! Sinto perfeitamente o cheiro!
E, à palavra Bola-de-Neve, a cachorrada soltava grunhidos sanguinários,
pondo os dentes à mostra.
Os animais andavam aterrorizados. Parecia-lhes que Bola-de-
Neve era uma espécie de entidade invisível, impregnando o ar à sua volta e
ameaçando-os com todas as espécies de perigos. Certa tarde, Garganta reuniuos
e, com uma expressão alarmada, disse-lhes ter várias notícias para dar.
Camaradas gritou, fazendo trejeitos nervosos
descobrimos uma coisa pavorosa. Bola-de-Neve vendeu-se a Frederick, da
Granja Pinchfield, que neste mesmo instante está planejando atacar-nos e tomar
nossa granja! Bola-de-Neve será o guia, quando o ataque começar. Mas ainda
há pior. Nós pensávamos que a rebelião de Bola-de-Neve for a causada por sua
vaidade e ambição. Pois estávamos enganados, camaradas. Sabeis qual foi a
verdadeira razão? Bola-de-Neve era aliado de Jones desde o início! Foi, o tempo
todo, agente de Jones. Tudo isso está comprovado em documentos que deixou e
que só agora descobrimos. Para mim isso explica muita coisa, camaradas. Pois
não vimos, com os nossos próprios olhos, a maneira como ele tentou
felizmente sem conseguir fazer que fôssemos derrotados e destruídos na
Batalha do Estábulo?
Os bichos ouviam estupefatos. Isto era um crime muitíssimo
maior do que ter destruído o moinho de vento. Mas alguns minutos se passaram
até eles compreenderem a completa significação de tudo aquilo. Todos se
lembravam, ou julgavam lembrar-se, de terem visto Bola-de-Neve carregando à
frente, na Batalha do Estábulo, de como ele os encorajava e incitava a cada
instante, não titubeando um só segundo quando as balas de Jones rasgaram-lhe
o dorso. Inicialmente foi difícil entender de que maneira isso combinava com
estar do lado de Jones. Até Sansão, que raras vezes fazia perguntas, ficou
confuso. Deitou-se, enfiou as patas dianteiras debaixo do corpanzil, fechou os
olhos e, com grande esforço, tentou reunir os pensamentos.
Não acredito disse. Bola-de-Neve lutou bravamente na
Batalha do Estábulo. Isso eu vi com meus próprios olhos. Pois nós até não lhe
demos uma Herói Animal, Primeira Classe, logo depois?
Esse foi o nosso erro, camaradas. Pois agora sabemos, e
está tudo escrito nos documentos encontrados que, na realidade, ele tentava
conduzir-nos à desgraça.
Mas ele foi ferido insistiu Sansão. Todos o vimos
ensangüentado.
Isso era parte do trato gritou Garganta. O tiro de Jones
pegou apenas de raspão. Eu poderia mostrar isso a vocês, escrito com a letra
dele mesmo, se vocês soubessem ler. A combinação era Bola-de-Neve dar o
sinal de retirada no momento crítico e abandonar o terreno ao inimigo. E ele
quase conseguiu isso, posso dizer até que teria conseguido, se não fosse o
nosso heróico Líder, o Camarada Napoleão. Lembram-se de que, bem no
momento em que Jones e seus homens atingiram o pátio, Bola-de-Neve, de
repente, virou-se e fugiu, seguido de muitos animais? E não foi nesse exato
momento, quando já nos dominava o pânico e tudo parecia perdido, que o
Camarada Napoleão surgiu proferindo o brado de Morte à Humanidade! e
fincou os dentes na perna de Jones? Por certo vocês se lembram disso, não é,
camaradas? exclamou Garganta, dando pulinhos de um lado para outro.
Bem, agora que Garganta descrevera a cena tão vividamente,
parecia aos animais que de fato se lembravam. Pelo menos lembravam-se de, no
momento crítico da Batalha, Bola-de-Neve voltar-se para fugir. Sansão, porém,
ainda permanecia um tanto contrafeito.
Não acredito que Bola-de-Neve fosse um traidor desde o
começo disse por fim. O que fez depois, é outra coisa. Eu ainda acho que
na Batalha do Estábulo ele foi um bom camarada.
Nosso Líder, o Camarada Napoleão disse Garganta,
falando devagar e com firmeza declarou categoricamente, categoricamente,
camaradas!, que Bola-de-Neve era agente de Jones desde o início...sim, desde
o instante mesmo em que imaginamos a Revolução.
Ah, isso é diferente! respondeu Sansão Se o
Camarada Napoleão diz, deve ter razão.
Hum, esse é o verdadeiro espírito, camarada! exclamou
Garganta. Porém, todos notaram a olhadela feia que deu para Sansão, com seus
olhos matreiros.
Depois virou-se para ir embora, mas se deteve e acrescentou de
maneira impressionante:
Alerto a todos os animais desta fazenda para que mantenham
os olhos bem abertos. Temos motivos para pensar que alguns dos agentes
secretos de Bola-de-Neve estão ocultos entre nós neste momento! Quatro dias
depois, à tardinha, Napoleão mandou que os bichos se reunissem no pátio.
Quando todos haviam comparecido, Napoleão emergiu do Casarão, ostentando
ambas as suas medalhas (pois recentemente conferira a si próprio a Herói
Animal Primeira Classe e a Herói Animal, Segunda Classe), com seus
nove cachorros fazendo demonstrações à sua, volta e soltando rosnados que
causavam calafrios nas espinhas dos animais. Estes se encolheram silenciosos
em seus lugares, parecendo pressentir que algo horrível estava por acontecer.
Napoleão parou e dirigiu um olhar severo à assistência; depois
deu um guincho estridente. Imediatamente os cachorros avançaram, pegando
quatro porcos pelas orelhas e arrastando-os a guinchar, de dor e terror, até os
pés de Napoleão. As orelhas dos porcos sangraram e o gosto do sangue
pareceu enlouquecer os cachorros. Para surpresa de todos, três deles
lançaram-se sobre Sansão. Este reagiu com um pataço que pegou um dos
cachorros ainda no ar, jogando-o ao solo. O cachorro ganiu pedindo compaixão,
e os outros dois fugiram, com o rabo entre as pernas. Sansão olhou para
Napoleão para saber se devia liquidar o cachorro ou deixá-lo ir. Napoleão
pareceu mudar de idéia e rispidamente ordenou a Sansão que o soltasse, e ele
ergueu a pata, deixando ir o cachorro ferido, uivando.
O tumulto amainou. Os quatro porcos esperavam trêmulos, com
a culpa desenhada em cada linha do semblante. Então Napoleão concitou-os a
confessar seus crimes. Eram os mesmos que haviam protestado quando
Napoleão abolira as Reuniões dominicais. Sem mais demora, confessaram ter
realizado contatos secretos com Bola-de-Neve desde o dia de sua expulsão e
haver colaborado com ele na destruição do moinho de vento; confessaram ainda
que também haviam-se comprometido com ele a entregar a Granja dos Bichos a
Frederick. Acrescentaram que Bola-de-Neve havia admitido, na presença deles,
ter sido durante muitos anos agente secreto de Jones. Ao fim da confissão, os
cachorros estraçalharam-lhes a garganta e, com voz terrível, Napoleão
perguntou se algum outro animal tinha qualquer coisa a confessar.
As três galinhas que haviam liderado a tentativa de reação a
respeito dos ovos aproximaram-se e declararam que Bola-de-Neve lhes
aparecera em sonho, instigando-as a desobedecerem as ordens de Napoleão.
Também foram degoladas. Aí veio um ganso e confessou ter escondido seis
espigas de milho durante a colheita do ano anterior, comendo-as depois, à noite.
Uma ovelha confessou ter urinado no açude por insistência, disse, de Bola-de-
Neve e duas outras ovelhas confessaram ter assassinado um velho bode,
seguidor especialmente devotado de Napoleão, fazendo-o correr em volta de uma
fogueira quando ele, coitado, estava com um ataque de asma. Foram mortas ali
mesmo. E assim prosseguiu a sessão de confissões e execuções, até haver um
montão de cadáveres aos pés de Napoleão e no ar um pesado cheiro da sangue,
coisa que não sucedia desde a expulsão de Jones.
Quando tudo acabou, os bichos sobreviventes, com exceção dos
porcos e dos cachorros, retiraram-se furtivamente, trêmulos e angustiados. Não
sabiam o que era mais chocante, se a traição dos animais que se haviam
acumpliciado com Bola-de-Neve, ou se a cruel repressão recém-presenciada.
Nos velhos tempos eram freqüentes as cenas sangrentas, igualmente
horripilantes, entretanto agora lhes pareciam ainda piores, uma vez que
ocorriam entre eles mesmos. Desde o dia em que Jones deixara a fazenda, até
aquele dia, nenhum animal matara outro animal. Nem sequer um rato fora morto.
Haviam percorrido o caminho até a colina do moinho inacabado e de comum
acordo deitaram-se, procurando aquecer uns aos outros Quitéria, Maricota,
Benjamim, as vacas, as ovelhas e todo o bando de gansos e galinhas, todos eles,
afinal, exceto o gato, que desaparecera de repente, ao chegar a ordem de
Napoleão para a reunião. Durante algum tempo ninguém falou. Somente Sansão
permanecia de pé. Andava, impaciente, de um lado para o outro, batendo com a
longa cauda negra aos flancos e proferindo, de vez em quando, um gemido de
estupefação. Finalmente disse:
Não entendo. Nunca pensei que coisas assim pudessem
acontecer em nossa granja. Deve ser o resultado de alguma falha nossa. A
solução que vejo é trabalhar mais ainda. Daqui por diante, vou levantar uma hora
mais cedo.
E saiu no seu trote pesadão, rumo à pedreira. Lá chegando,
juntou dois grandes montes de pedras e arrastou-os até o moinho de vento, antes
de recolher-se para dormir.
Os bichos se amontoaram em volta de Quitéria, em silêncio. O
outeiro onde estavam dava-lhes uma ampla vista da região. A maior parte da
Granja dos Bichos abria-se ante eles a grande pastagem que se estendia até
a estrada, o campo de feno, o bosque, o açude, os campos arados onde estava o
trigo novo, ainda fino e verde, e os telhados vermelhos do casario da granja, onde
a fumaça saía das chaminés. Era, uma tarde clara de primavera. A grama e a
sebe em brotação douravam-se aos raios horizontais do sol. Jamais a granja
lhes parecera e com uma espécie de surpresa lembraram-se de que tudo era
deles, cada centímetro era de sua propriedade um lugar tão agradável.
Olhando pela encosta da colina, Quitéria ficou com os olhos cheios de água. Se
pudesse exprimir seus pensamentos, diria que aquilo não era bem o que
pretendiam ao se lançarem, anos atrás, ao trabalho de derrubar o gênero
humano. Aquelas cenas de terror e sangue não eram as que previra naquela
noite em que o velho Major, pela primeira vez, os instigara à rebelião. Se ela
própria pudesse imaginar o futuro, veria uma sociedade de animais livres da
fome e do chicote, todos iguais, cada qual trabalhando de acordo com sua
capacidade, os mais fortes protegendo os mais fracos, como ela protegera
aquela ninhada de patinhos na noite do discurso do Major. Em vez disso não
podia compreender por que haviam chegado a uma época em que ninguém
ousava dizer o que pensava, em que os cachorros rosnantes e malignos
perambulavam por toda parte e a gente era obrigada a ver camaradas feitos em
pedaços após confessarem os crimes mais horríveis. Não tinha em mente idéias
de rebelião ou desobediência. Sabia que, por piores que fossem, as coisas
estavam muito melhores do que nos tempos de Jones e que antes de mais nada
era preciso evitar o retorno dos seres humanos. Acontecesse o que
acontecesse, ela permaneceria fiel, trabalharia bastante, cumpriria as ordens
recebidas e aceitaria a liderança de Napoleão. Mesmo assim, não fora por
aquilo que ela e todos os animais haviam esperado e trabalhado. Não fora para
aquilo que haviam construído o moinho de vento e enfrentado as balas da
espingarda de Jones. Tais eram seus pensamentos, embora ela não tivesse
palavras para expressá-los.
Por fim, sentindo que assim substituiria as palavras que não
conseguia encontrar, começou a cantar Bichos da Inglaterra. Os outros animais,
sentados à sua volta, foram aderindo e cantaram a canção três vezes bem na
melodia, mas lenta e tristemente como nunca haviam cantado antes.
Mal haviam terminado de cantar a terceira vez, apareceu
Garganta, seguido de dois cachorros, com ar de quem tem coisa muito
importante a dizer. Anunciou que, por decreto especial do Camarada Napoleão,
a canção Bichos da Inglaterra fora abolida. Daquele momento em diante, era
proibido cantá-la.
Os animais foram colhidos de surpresa.
Por quê? exclamou Maricota.
Não há necessidade, camaradas respondeu Garganta
inflexivelmente. Bichos da Inglaterra era a canção da Revolução. Mas a
Revolução agora está concluída. A execução dos traidores, hoje à tarde, foi o ato
final. Em Bichos da Inglaterra expressávamos nosso anseio por uma sociedade
melhor, no porvir. Ora, essa sociedade já foi instituída. Evidentemente, o hino não
tem mais valor algum.
Mesmo amedrontados como estavam, alguns animais poderiam
ter protestado, se nesse momento as ovelhas não enveredassem pelo Quatro
pernas bom, duas pernas ruim, que durou vários minutos, pondo fim à
discussão.
E, assim, não mais se ouviu Bichos da Inglaterra. Em seu lugar,
Mínimo, o poeta, compusera outra canção que começava dizendo:
Granja dos Bichos,
Granja dos Bichos,
Jamais te farão mal!
e isto passou a ser cantado todos os domingos após o
hasteamento da bandeira. Mas, de certa maneira, nem a letra nem a música
jamais pareceram, aos animais, como as de Bichos da Inglaterra.
CAPÍTULO VIII
Poucos dias mais tarde, quando já amainara o terror causado
pelas execuções, alguns animais lembraram-se ou julgaram lembrar-se de
que o Sexto Mandamento rezava: Nenhum animal matará outro animal. Embora
ninguém o mencionasse ao alcance dos ouvidos dos porcos ou dos cachorros,
parecia-lhes que a matança ocorrida não se ajustava muito bem com isso.
Quitéria pediu a Benjamim que lesse o Sexto Mandamento e quando Benjamim,
como sempre, respondeu que se recusava a envolver-se em tais assuntos,
procurou Maricota. Esta leu para ela o Sexto Mandamento. Dizia: Nenhum
animal matará outro animal, sem motivo. De uma ou outra maneira, as duas
últimas palavras haviam escapado à memória dos bichos. Mas estes viam agora
que o Sexto Mandamento não fora violado; sim, pois, evidentemente, havia boas
razões para matar os traidores que se haviam aliado a Bola-de-Neve.
Durante aquele ano, os bichos trabalharam ainda mais que no
ano anterior. A reconstrução do moinho de vento, as paredes com o dobro de
espessura, sua conclusão no prazo marcado, juntamente com o trabalho normal
da granja, era tudo tremendamente laborioso. Momentos houve em que lhes
pareceu que estavam trabalhando mais do que no tempo de Jones, sem se
alimentarem melhor. Nos domingos de manhã, Garganta, segurando uma
comprida folha de papel, lia, para eles relações de estatísticas comprobatórias
de que a produção de todas as classes de gêneros alimentícios aumentara de
duzentos, trezentos ou quinhentos por cento, conforme o caso. Os bichos não
viam razão para desacreditá-lo, especialmente porque já não conseguiam
lembrar-se com clareza das exatas condições de antes da Revolução. Mesmo
assim, dias havia em que prefeririam ter menos estatísticas e mais comida.
Todas as ordens, agora, eram transmitidas por meio de
Garganta ou de outro porco. Napoleão não era visto em público mais do que uma
vez cada quinze dias. E, quando aparecia, era acompanhado, não só pela sua
matilha de cães, mas também por um garnisé preto que marchava à sua frente,
atuando como arauto, soltando um cocoricó antes de cada fala de Napoleão.
Mesmo na casa grande, diziam, ele habitava um apartamento separado dos
demais. Fazia as refeições sozinho, com dois cachorros para servi-lo, e comia
no serviço de jantar de porcelana da cristaleira da sala. Anunciou-se também
que a espingarda seria disparada anualmente na data do aniversário de
Napoleão, assim como nos outros dois aniversários.
Agora já não mencionavam Napoleão como Napoleão
simplesmente. Referiam-se a ele de maneira formal, como nosso Líder, o
Camarada Napoleão, e os porcos gostavam de inventar para ele títulos tais
como Pai de Todos os Bichos, Terror da Humanidade, Protetor dos Apriscos,
Amigo dos Pintainhos e assim por diante. Garganta, em seus discursos, com
lágrimas rolando pelo focinho, falava na sabedoria de Napoleão, na bondade de
seu coração, no profundo amor que devotava aos animais de todos os lugares,
mesmo e especialmente aos infelizes animais que ainda viviam na
ignorância e na escravidão, em outras granjas. Tomara-se usual atribuir a
Napoleão o crédito de todos os êxitos e de todos os golpes de sorte. Ouvia-se,
freqüentemente, uma galinha comentar para outra: Sob a orientação de nosso
Líder, o Camarada Napoleão, pus cinco ovos em seis dias; ou duas vacas,
bebendo juntas no açude, exclamarem: Graças à liderança do Camarada
Napoleão, que gosto bom tem esta água! O sentimento geral da granja era bem
expresso num poema intitulado O Camarada Napoleão, composto por Mínimo,
que era assim:
Amigo dos órfãos!
Fonte da Felicidade!
Senhor do balde de lavagem!
Oh, minh'alma arde
Em fogo quando eu te vejo
Assim, calmo e soberano,
Como o sol na imensidão,
Camarada Napoleão!
Tu és aquele que tudo dá, tudo
Quanto as pobres criaturas amam.
Barriga cheia duas vezes por dia,
Palha limpa onde rolar;
Todos os bichos, grandes, pequenos,
Dormem tranqüilos, enquanto
Tu zelas por nós na solidão,
Camarada Napoleão!
Tivesse eu um leitão e
Antes mesmo que atingisse
O tamanho de um garrafão ou de um barril
Já teria aprendido a ser, eternamente,
Um teu fiel e leal seguidor. E o primeiro
Guincho que daria meu leitão. seria:
Camarada Napoleão!
Napoleão aprovou esse poema e mandou escrevê-lo no grande
celeiro, na parede oposta àquela onde estavam os Sete Mandamentos. Sobre ele
foi colocado um retrato de Napoleão de perfil, feito por Garganta.
Enquanto isso, por intermédio de Whymper, Napoleão
envolvera-se em negociações complicadíssimas com Frederick e Pilkington. As
pilhas de madeira ainda não estavam vendidas. Dentre os dois, Frederick era o
mais ansioso por colocar-lhes a mão, mas não oferecia um preço razoável. Ao
mesmo tempo circulavam renovados boatos de que Frederick e seus homens
estavam planejando atacar a Granja dos Bichos e destruir o moinho de vento,
cuja construção lhe causara enorme ciúme. Sabia-se que Bola-de-Neve ainda
estava oculto na Granja Pinchfield. Em meio ao verão correu entre os animais a
notícia alarmante de que três galinhas se haviam apresentado confessando que,
instigadas por Bola-de-Neve, haviam conspirado para assassinar Napoleão.
Foram executadas imediatamente e se tomaram novas medidas para a segurança
de Napoleão. Quatro cachorros passaram a montar guarda junto à sua cama,
durante a noite, um em cada canto, e um jovem porco de nome Rosito recebeu a
tarefa de provar a comida, para evitar que ele fosse envenenado.
Mais ou menos por essa época, foi anunciado que Napoleão
acertara vender as pilhas de madeira ao Sr. Pilkington; ia assinar também um
acordo regular para a troca de certos produtos entre a Granja dos Bichos e
Foxwood. As relações entre Napoleão e Pilkington, embora mantidas apenas por
intermédio de Whymper, eram agora quase amistosas. Os bichos não confiavam
em Pilkington, ser humano que era, mas preferiam-no a Frederick, a quem tanto
temiam quanto odiavam. Com o passar do verão e estando o moinho de vento
perto da conclusão, os boatos de um iminente e traiçoeiro ataque tornavam-se
cada vez mais fortes. Frederick, dizia-se, tencionava trazer contra eles vinte
homens armados de espingardas e já subornara os magistrados e a polícia, de
forma que, se conseguissem colocar as mãos nas escrituras de propriedade da
Granja dos Bichos, não surgisse problema algum. Além disso, filtravam-se de
Pinchfield terríveis histórias a respeito das barbaridades a que Frederick
submetia seus animais. Havia chicoteado um cavalo velho até liquidá-lo, matava
as vacas de fome, assassinara um cachorro jogando-o numa fornalha, divertia-se
de noite assistindo a brigas de galos, em cujas esporas colocava pedaços de
lâminas de barbear. O sangue dos animais fervia de ódio quando ouviam contar o
que se fazia contra seus camaradas e, às vezes, alguns pediam que lhes fosse
permitido sair para atacar Pinchfield, expulsar os humanos e libertar os bichos.
Porém, Garganta aconselhava-os a evitar essas atitudes violentas e a confiar na
estratégia do Camarada Napoleão.
Não obstante, crescia o sentimento de ódio com relação a
Frederick. Certo domingo de manhã, Napoleão apareceu no celeiro e declarou
que jamais, em tempo algum, admitiria vender as pilhas de madeira a Frederick;
considerava abaixo de sua dignidade, disse, fazer negócios com patifes daquela
espécie. Os pombos, que continuavam a espalhar as mensagens da Revolução,
foram proibidos de pôr os pés em qualquer ponto de Foxwood e receberam
ordem de modificar seu slogan de Morte à Humanidade para Morte a
Frederick. Entrementes, no fim do verão, foi revelada outra das maquinações de
Bola-de-Neve. A lavoura de trigo estava cheia de joio e descobriu-se que Bolade-
Neve havia misturado sementes de joio às do trigo. Um ganso que tomara
parte no feito confessou sua culpa a Garganta e suicidou-se comendo frutinhas
de erva-moura. Os animais ficaram sabendo também que Bola-de-Neve jamais
havia recebido, como pensavam muitos até então, a comenda de Herói Animal,
Primeira Classe. Era apenas uma lenda, criada algum tempo depois da Batalha
do Estábulo pelo próprio Bola-de-Neve. Muito ao contrário, em vez de
condecorado, ele for a repreendido por demonstrar covardia durante a batalha.
Novamente, alguns bichos ouviram isso com perplexidade, mas Garganta
conseguiu convencê-los de que fora um lapso de suas memórias...
No outono, após um tremendo e exaustivo esforço, pois a
colheita se fizera ao mesmo tempo, o moinho de vento estava concluído. Restava
ainda instalar a maquinaria e Whymper andava tratando das compras, mas a
estrutura já estava pronta. Contra todas as dificuldades, a despeito da
inexperiência, dos implementos primitivos, da falta de sorte e da perfídia de Bolade-
Neve, a obra estava concluída no exato dia marcado! Cansados, mas
orgulhosos, os bichos deram voltas e mais voltas em torno de sua obra-prima,
que lhes parecia ainda mais linda do que da primeira vez. Além-disso, as
paredes tinham agora o dobro da espessura. Exceto explosivos, nada poderia
colocá-las abaixo. E ao pensarem nas modificações que suas vidas sofreriam
quando as pás estivessem girando e os dínamos em ação ao pensarem em
tudo isso, o cansaço os abandonava e eles saltavam ao redor do moinho de vento,
dando gritos de alegria. Napoleão em pessoa, acompanhado dos seus cachorros
e do seu garnisé, veio inspecionar o trabalho concluído; congratulou-se com os
animais pelo feito e anunciou que o moinho se chamaria Moinho Napoleão.
Dois dias mais tarde, os animais foram convidados para uma
reunião especial no celeiro. E ficaram abobados de surpresa quando Napoleão
comunicou ter vendido a madeira a Frederick. No dia seguinte, os caminhões de
Frederick chegariam para o carregamento. Durante todo o período de aparente
amizade com Pilkington, Napoleão na realidade negociara um acordo secreto
com Frederick.
Todas as relações com Foxwood foram cortadas e enviadas a
Pilkington mensagens insultuosas. Os pombos receberam ordem de não pousar
mais na Granja Pinchfield e mudar o slogan de Morte a Frederick para Morte
a Pilkington. Ao mesmo tempo Napoleão assegurou a todos que as histórias
sobre o iminente ataque à Granja dos Bichos eram inteiramente falsas e que os
boatos a respeito da crueldade de Frederick para com os animais eram muito
exagerados. Todos esses boatos eram, provavelmente, coisa de Bola-de-Neve e
seus agentes. Parecia, agora, que Bola-de-Neve, na realidade, não estava
escondido na Granja Pinchfield; aliás nunca estivera lá, em toda sua vida, vivia (e
cercado de muito luxo, sabiam agora) em Foxwood, sendo, além do mais,
pensionista de Pilkington há muitos anos.
Os porcos estavam quase em êxtase com a esperteza de
Napoleão. Fingindo ser amigo de Pilkington, obrigara Frederick a aumentar seu
preço em doze libras. Porém, a qualidade superior da mente de Napoleão, dizia
Garganta, estava no fato de não confiar em ninguém, nem mesmo em Frederick.
Este quisera pagar a madeira com uma coisa chamada cheque, que era, ao que
diziam, um pedaço de papel com uma promessa de pagamento escrita. Mas
Napoleão era vivo demais para isso. Exigiu o pagamento em notas autênticas de
cinco libras, que deveriam ser entregues antes da retirada da madeira. Frederick
já pagara; e a soma era suficiente para comprar a maquinaria do moinho de
vento.
A madeira já fora retirada com grande rapidez. Quando todo
carregamento estava bem longe, houve outra reunião especial no celeiro, para os
bichos examinarem as notas de Frederick. Sorrindo beatificamente e usando
suas condecorações, Napoleão recostara-se numa cama de palha, com o
dinheiro a seu lado, cuidadosamente empilhado numa travessa da cozinha da
casa-grande. Os animais passavam lentamente em fila e cada um olhava o tempo
que quisesse. Sansão espichou o focinho para cheirar as notas e as delicadas
coisinhas agitaram-se e farfalharam com sua respiração.
Três dias mais tarde, houve um deus-nos-acuda. Whymper,
branco como cera, chegou afobado com sua bicicleta, deixou-a caída no pátio e
correu para dentro da casa. Daí a momentos ouviu-se um pavoroso rugido de
raiva vindo do apartamento de Napoleão. A notícia do que sucedera espalhou-se
pela granja com a rapidez de um raio. As notas eram falsas! Frederick levara a
madeira de graça!
Napoleão imediatamente chamou os animais e com um vozeirão
de arrepiar proclamou a sentença de morte contra Frederick. Ao ser capturado,
disse, Frederick seria queimado vivo. Ao mesmo tempo avisou que, depois
daquela insídia, deveriam esperar pelo pior. Frederick e seus homens poderiam
desencadear a qualquer momento o tão falado ataque. Foram colocadas
sentinelas em todos os caminhos que conduziam à granja. Além disso, quatro
pombos foram mandados a Foxwood com uma mensagem conciliadora, que
levava as esperanças de restabelecer as boas relações com Pilkington.
Logo na manhã seguinte sobreveio o ataque. Os animais
estavam fazendo a refeição matinal, quando as sentinelas chegaram correndo
com a notícia de que Frederick e seus seguidores já haviam atravessado a
porteira das cinco barras. Corajosamente, os bichos saíram ao seu encontro,
mas desta vez não obteriam uma vitória fácil como a da Batalha do Estábulo.
Eram quinze homens, com meia dúzia de espingardas, e abriram fogo tão logo
chegaram a cinqüenta metros. Os animais não puderam fazer frente à saraivada
de balas e, a despeito dos esforços de Napoleão e Sansão para fazê-los voltar à
luta, retrocederam. Muitos já estavam feridos. Refugiaram-se no casario da
granja e ficaram olhando prudentemente pelos buracos. Toda pastagem,
inclusive o moinho de vento, caíra nas mãos do inimigo. Até Napoleão estava
perplexo. Caminhava de um lado para o outro, sem proferir palavra, com o rabo
rígido e contraído. Olhares ansiosos eram lançados na direção de Foxwood. Se
Pilkington e seus homens os ajudassem, ainda poderiam ganhar a parada.
Porém, nesse momento, voltaram os quatro pombos enviados no dia anterior, um
deles trazendo um pedaço de papel da parte de Pilkington, com as palavras Bem
feito escritas a lápis.
Enquanto isso, Frederick e seus homens se haviam detido junto
ao moinho de vento. Os animais continuavam observando e viram surgir um péde-
cabra e um malho. Correu um murmúrio de aflição. Iam botar abaixo o moinho
de vento.
Impossível exclamou Napoleão. As paredes são
grossas demais para isso. Nem em uma semana conseguirão. Coragem,
camaradas.
Benjamim, porém, observava atentamente a atividade dos
homens. Lentamente, com um ar de quem se diverte, meneou o focinho.
Exatamente o que eu supunha disse ele. Vocês não vêem
o que eles estão fazendo? Daqui a pouco vão colocar explosivos naquele buraco.
Aterrorizados, os bichos esperaram. Era impossível abandonar
a proteção das casas Daí a pouco os homens saíram correndo em todas as
direções. Ouviu-se, logo após, um estrondo ensurdecedor. Os pombos
revolutearam no ar e os animais todos, exceto Napoleão, jogaram-se ao chão.
Quando se levantaram outra vez, havia uma gigantesca nuvem preta no lugar do
moinho. Aos poucos, a brisa a dissolveu. O moinho de vento havia desaparecido!
Aquilo devolveu a coragem aos animais. O medo e o desânimo
que sentiam foram engolfados pelo tremendo ódio que os dominou ante
aquela vilania inominável. Um brado de vingança subiu aos ares; sem esperar
ordens, reuniram-se e, como um só corpo, lançaram-se contra o inimigo. Desta
vez não fugiram às balas cruéis que caíam sobre eles, em saraivadas. Foi uma
batalha horrível, selvagem. Os homens atiraram várias vezes e quando os
animais os alcançaram foi aquela pancadaria em todas as direções, com
porretes e tacões de bota. Morreram uma vaca, três ovelhas e dois gansos, e
quase todo mundo ficou ferido. Até Napoleão, que dirigia as operações da
retaguarda, teve a ponta do rabicho arranhada por um balim. Mas aos homens
não tocou melhor sorte. Três tiveram as cabeças quebradas pelos golpes de
Sansão; outro, a barriga furada pelo chifre de uma vaca; outro viu suas calças
quase arrancadas por Lulu e Ferrabrás. E quando os nove cachorros da guarda
pessoal de Napoleão, que este mandara realizar um movimento por trás da sebe,
apareceram de repente no flanco dos humanos, latindo furiosamente, o pânico os
dominou. Perceberam o perigo de serem cercados. Frederick gritou a seus
homens que se retirassem enquanto havia passagem, e em seguida o inimigo
fugia acovardado para salvar a vida. Os animais perseguiram-nos até o fundo do
campo, aplicando-lhes ainda os últimos golpes ao atravessarem a sebe de
pilriteiro.
Haviam vencido, mas estavam feridos e sangravam. Lentamente,
começaram a voltar para a granja. A vista dos camaradas mortos, estirados
sobre a relvas comoveu alguns até as lágrimas. E por alguns minutos detiveramse
num triste silêncio no local onde existira o moinho. Sim, ele sumira; fora-se
quase todo o seu trabalho. Até os alicerces estavam parcialmente destruídos. E
desta vez para reconstruí-lo não bastaria erguer de novo pedras caídas ali
mesmo: estas também haviam desaparecido. A força da explosão as arremessara
a centenas de metros. Era como se o moinho jamais houvesse existido.
Ao se aproximarem do sítio, Garganta, que estivera
inexplicavelmente ausente da luta, veio-lhes ao encontro, sacudindo o rabicho e
guinchando de satisfação. E os animais ouviram, da direção da granja, o troar
solene da espingarda.
A troco de quê está atirando aquela arma? perguntou
Sansão.
Para celebrar nossa vitória! exclamou Garganta.
Vitória. Que vitória? gritou Sansão. Tinha os joelhos
sangrando, perdera uma ferradura, rachara o casco e uma dúzia de chumbinhos
haviam-se alojado em sua pata traseira.
Você pergunta que vitória, camarada? Mas então não
expulsamos o inimigo do nosso solo, do solo sagrado da Granja dos Bichos?
Mas eles destruíram o moinho de vento. Nosso trabalho de
dois anos!
Que importa? Construiremos outro moinho de vento.
Construiremos meia dúzia de moinhos de vento, se quisermos. Vocês não
percebem, camaradas, que coisa formidável realizamos? O inimigo ocupava este
mesmo chão em que pisamos. E agora, graças à liderança do Camarada
Napoleão, nós o ganhamos centímetro por centímetro!
Quer dizer, ganhamos o que já era nosso retrucou
Sansão.
Essa foi a nossa vitória insistiu Garganta.
Coxearam até o pátio. As balas, sob o couro de Sansão,
aferroavam dolorosamente. Ele enxergava à sua frente a pesada tarefa de
reconstruir o moinho de vento e, mesmo em imaginação, já se atirava ao trabalho.
Pela primeira vez, entretanto, ocorreu-lhe a lembrança de que já tinha onze anos
de idade e que talvez seus músculos já não tivessem a mesma força de antes.
Porém, quando os bichos viram tremular a bandeira verde,
ouviram a arma atirar novamente sete tiros ao todo e o discurso que
Napoleão fez congratulando-se com a atuação deles, pareceu-lhes que, afinal de
contas, haviam obtido uma grande vitória. Os animais caídos na batalha tiveram
funerais solenes. Sansão e Quitéria puxaram o carroção que serviu de carro
fúnebre e Napoleão abriu em pessoa o cortejo. Dedicaram-se dois dias inteiros
às celebrações. Houve canções, discursos, novos disparos da espingarda e o
prêmio especial de uma maçã para cada animal, cinqüenta gramas de milho para
cada ave e três biscoitos para cada cachorro. Proclamou-se que a batalha se
chamaria Batalha do Moinho de Vento e que Napoleão havia criado nova
comenda, a Ordem da Bandeira Verde, que conferira a si próprio. Em meio ao
regozijo geral, o assunto das notas de dinheiro foi esquecido.
Foi alguns dias depois disso que os porcos encontraram, na
adega da casa-grande, uma caixa de uísque. Passara despercebida na época da
ocupação. Naquela noite chegou da casa o som de uma cantoria em que, para
surpresa de todos, se ouviam trechos de Bichos da Inglaterra. Mais ou menos às
nove e meia da noite, Napoleão, usando um velho chapéu coco de Jones, foi visto
claramente emergir da porta traseira, dar um rápido galope em volta do pátio e
sumir pela porta outra vez. Na manhã seguinte, um silêncio profundo tomara
conta da casa. Ao que parecia, nenhum porco estava de pé. Eram quase nove
horas quando apareceu Garganta, vacilante e deprimido, com os olhos
embaçados o rabicho mole, com um aspecto seriamente doentio. Chamou todo
mundo e disse que tinha péssimas notícias para dar. O Camarada Napoleão
estava à morte!
Ouviu-se um grito de lamento Colocaram palha fora da porta da
casa e os animais entraram pé ante pé. Com lágrimas nos olhos, perguntavamse
que seria deles se o Líder faltasse. Correu o boato de que Bola-de-Neve
afinal conseguira envenenar a comida de Napoleão. As onze, Garganta saiu de
novo para fazer outra proclamação. Como último ato sobre a terra, o Camarada
Napoleão expedira o seguinte decreto: a ingestão de álcool seria punida com a
morte.
Já à noite, Napoleão parecia um pouco melhor e na manhã
seguinte Garganta pôde anunciar sua franca recuperação. Na tarde desse dia
Napoleão voltou à atividade e no dia seguinte soube-se que dera instruções a
Whymper para comprar, em Willingdon, alguns folhetos sobre fermentação e
destilação. Uma semana depois, Napoleão deu ordem que fosse arado o
pequeno potreiro atrás do pomar, anteriormente destinado ao repouso dos
animais aposentados. Espalhou-se que a pastagem estava cansada e
necessitava de uma nova semeadura, porém logo se soube que Napoleão
pretendia semeá-la com cevada.
Mais ou menos nessa época, aconteceu um incidente que
nenhum dos bichos pôde compreender. Certa noite, à meia-noite mais ou menos,
ouviu-se um ruído de queda no pátio e os animais correram de suas baias para
ver o que sucedera. Era uma noite de lua. Ao pé da parede do fundo do grande
celeiro, na qual estavam escritos os Sete Mandamentos, encontraram uma
escada quebrada em dois pedaços. Garganta, momentaneamente aturdido, jazia
estatelado junto a ela, tendo ao lado uma lanterna, uma brocha e uma lata de tinta
branca, entornada. Os cachorros fizeram imediatamente um círculo em torno de
Garganta e escoltaram-no de volta à casa-grande, tão logo ele pôde caminhar.
Os bichos não conseguiam fazer sequer idéia do que significava aquilo, exceto
Benjamim, que torceu o focinho com um ar de compreensão e pareceu entender
o que se passara, mas nada disse.
Porém, alguns dias mais tarde, Maricota, lendo os Sete
Mandamentos, notou que havia outro mandamento mal recordado pelos animais.
Todos pensavam que o Quinto Mandamento era Nenhum animal beberá álcool,
mas haviam esquecido duas palavras. Na realidade, o Mandamento dizia:
Nenhum animal beberá álcool em excesso.
CAPÍTULO IX
A rachadura do casco de Sansão levou muito tempo para
cicatrizar. Haviam iniciado a reconstrução do moinho de vento no dia seguinte ao
final das celebrações. Sansão recusou-se a aceitar um só dia de dispensa e fez
questão de honra em não dar mostras da dor que sofria. À noite, admitia em
particular para Quitéria que o casco realmente ø incomodava muito. Quitéria
tratava-o com infusões de ervas, que preparava mastigando, e tanto ela como
Benjamim diziam a Sansão que não trabalhasse tanto Os pulmões de um cavalo
não são de ferro, alertava ela. Sansão, porém, não atendia. Explicava só tinha
uma ambição ver o moinho de vento Concluído antes de aposentar-se.
De início, quando as leis da Granja dos Bichos foram
elaboradas, fixara-se a idade de aposentadoria em doze anos para os cavalos e
os porcos, catorze para as vacas, nove para os cachorros, sete para as ovelhas e
cinco para as galinhas e os gansos. Pensões liberais se estabeleceram para os
animais idosos. Até então, nenhum bicho se aposentara, mas ultimamente o
assunto vinha sendo objeto de freqüentes conversas. Como o potreiro atrás do
pomar fora semeado com cevada, dizia-se agora que um canto da pastagem
grande seria cercado e reservado para os velhos. Para os cavalos, ao que se
falava, a pensão seria de dois quilos e meio de milho por dia e, no inverno, oito
quilos de feno, mais uma cenoura, ou talvez uma maçã, nos feriados. O décimo
segundo aniversário de Sansão seria no fim do verão do ano seguinte.
A vida ia dura. O inverno foi tão frio quanto o anterior, e a
quantidade de alimento ainda menor. Novamente foram reduzidas todas as
rações, exceto as dos porcos e dos cachorros. Uma igualdade por demais rígida
em matéria de rações, explicou Garganta, seria contrária ao espírito do
Animalismo. De qualquer maneira, não teve dificuldade em provar aos outros
bichos que na realidade eles não sentiam falta de comida, a despeito das
aparências. Naquele momento, de fato, fora necessário realizar um
reajustamento das rações (Garganta sempre se referia a reajustamentos,
nunca a reduções), mas, em comparação com o tempo de Jones, a diferença
para melhor era enorme. Lendo os dados estatísticos em voz aguda e rápida,
provou-lhes, com riqueza de detalhes, que eles recebiam mais aveia, mais feno e
mais do que na época de Jones; que trabalhavam muito menos, que a água
potável era de melhor qualidade, que viviam mais tempo, que havia mais palha
nas baias e que as pulgas já não incomodavam tanto. Os animais acreditavam
em cada palavra. Para falar a verdade, tanto Jones como tudo quanto ele
representava já estavam quase apagados de suas memórias. Sabiam que a vida
estava difícil e cheia de privações, que andavam constantemente com frio e com
fome, e traba1hando sempre que não estavam dormindo. Mas, sem dúvida,
antigamente fora muito pior. Gostavam de acreditar nisso. Além do mais,
naqueles dias eram escravos, ao passo que, agora, eram livres; e tudo isso,
afinal, fazia diferença, conforme Garganta sempre dizia.
Havia agora muito mais bocas a alimentar. No outono as quatro
porcas haviam dado cria quase simultaneamente trinta e um leitõezinhos ao
todo. Os leitões eram malhados, e, sendo Napoleão o único cachaço da fazenda,
era fácil adivinhar sua linguagem. Foi proclamado que, mais tarde, quando
comprassem tábuas e tijolos, seria construída uma escola no jardim da casa. Por
enquanto, os leitões seriam instruídos pelo próprio Napoleão, na cozinha.
Faziam seus exercícios no jardim e eram aconselhados a não brincar com os
filhotes dos outros animais. Mais ou menos por essa época, estabeleceu-se que,
quando um porco e outro animal se encontrassem numa trilha, o outro animal
cederia a passagem; e também que os porcos, qualquer que fosse seu grau
hierárquico teriam o direito de usar fitas vermelhas no rabicho aos domingos.
A granja tivera um ano bem sucedido, mas faltava dinheiro. Era
necessário comprar tijolos, areia e cal para a escola, e economizar outra vez
para a maquinaria do moinho de vento. Além disso, havia ainda necessidade de
querosene para os lampiões e velas para a casa, açúcar para a mesa de
Napoleão(ele o proibira para os outros porcos, dizendo que engordava), todo o
suprimento normal de ferramentas, pregos, carvão, arame, ferro velho, e
biscoitos para cachorros. Venderam uma meda de feno e parte da colheita de
batatas, e o contrato de fornecimento de ovos foi aumentado para seiscentos por
semana, de forma que as galinhas naquele ano mal puderam chocar um número
de ovos, que as mantivesse no mesmo nível. As rações, já reduzidas em
dezembro, sofreram nova redução em fevereiro, e foram proibidos os lampiões
nos estábulos, a fim de economizar querosene. Os porcos, entretanto, pareciam
bastante bem, pelo menos ganhavam sempre alguns quilinhos.
Uma tarde, em fins de fevereiro, correu pelo pátio, proveniente
da cozinha, um cheiro gostoso, suculento, quentinho, como nunca os animais
haviam sentido antes. Alguém disse que era cheiro de cevada cozida. Os bichos
farejaram avidamente o ar e ficaram a pensar se não seria algum fervido para o
jantar. Mas não apareceu fervido nenhum no jantar e no domingo seguinte foi
comunicado que toda a cevada passaria a ser reservada para os porcos. O
campinho junto ao pomar já fora semeado com cevada e logo transpirou a notícia
de que cada porco estava recebendo diariamente, a ração de meia garrafa de
cerveja, sendo que Napoleão recebia meio galão e era servido na terrina da
baixela de porcelana.
Mas se havia grandes agruras a arrostar, estas eram
compensadas pelo fato de a vida agora ter muito mais dignidade. Havia mais
canções, mais discursos, mais desfiles. Napoleão determinara que uma vez por
semana houvesse uma coisa chamada Manifestação Espontânea, cuja finalidade
era comemorar as lutas e triunfos da Granja dos Bichos. À hora marcada os
animais deviam abandonar o trabalho e desfilar pelo terreno da granja, em
formação militar, os porcos à frente, depois os cavalos, depois as vacas, depois
as ovelhas e, por último, as aves. Os cachorros enquadravam a formatura e à
testa marchava o garnisé preto de Napoleão. Sansão e Quitéria conduziam
sempre a bandeira verde com o desenho do chifre e da ferradura e a legenda
Viva o Camarada Napoleão. A seguir havia recitação de poemas compostos em
honra de Napoleão, um discurso de Garganta dando detalhes dos últimos
aumentos na produção de gêneros, e no momento exato a espingarda dava um
tiro. Quem mais gostava das Manifestações Espontâneas eram as ovelhas, e se
alguém se queixava (havia quem o fizesse, quando os porcos ou os cachorros
não andavam por perto) de que aquele negócio era uma perda de tempo e
obrigava a ficar bom pedaço no frio, as ovelhas invariavelmente calavam o
insatisfeito com um ensurdecedor balido de Quatro pernas bom, duas pernas
ruim! De modo geral, porém, os bichos gostavam daquelas celebrações.
Achavam confortador serem relembrados de que, afinal, não tinham patrões e
todo trabalho que enfrentavam era em seu próprio benefício. E assim, à custa das
cantorias, dos desfiles, das estatísticas de Garganta, do estrondo da espingarda,
do cocoricó do garnisé e do drapejar da bandeira, conseguiam esquecer que
estavam de barriga vazia, pelo menos a maior parte do tempo.
Em abril, a Granja dos Bichos foi proclamada República e houve
necessidade de eleger um Presidente. Apareceu um só candidato, Napoleão,
que foi eleito por unanimidade. No mesmo dia notificou-se a descoberta de novos
documentos, que revelavam mais detalhes sobre a cumplicidade de Bola-de-
Neve com Jones. Soube-se que Bola-de-Neve não apenas tentara perder a
Batalha do Estábulo, por meio de um estratagema, conforme os animais já tinham
tomado conhecimento, mas lutara abertamente ao lado de Jones. Na realidade,
fora ele o verdadeiro líder das forças humanas e jogara-se à batalha com as
palavras Viva a Humanidade! nos lábios. Os ferimentos em suas costas, que
alguns poucos bichos lembravam-se de ter visto, haviam sido causados pelos
dentes de Napoleão.
Em meio ao verão, Moisés, o corvo, reapareceu
inesperadamente na granja, após uma ausência de vários anos. Continuava o
mesmo, não trabalhava e contava as histórias de sempre a respeito da Montanha
de Açúcar. Encarapitava-se num toco de árvore e arengava durante horas para
quem quisesse ouvir:
Lá em cima, camaradas dizia ele, solenemente, apontando
o céu com a bicanca lá em cima, pouco além daquela nuvem preta, ali está
ela, a Montanha de Açúcar, o lugar feliz onde nós, pobres animais,
descansaremos para sempre desta nossa vida de trabalho.
Chegava a afirmar haver estado lá, num dos vôos mais altos, e
ter visto os infindos campos de trevo e os bolos de linhaça e o açúcar crescendo
nas sebes. Muitos bichos acreditavam. Suas vidas atualmente eram de fome e de
trabalho, raciocinavam; era justo que lhes estivesse reservado um mundo melhor,
mais além? Coisa difícil de determinar era a atitude dos porcos, com relação a
Moisés. Eles afirmavam peremptoriamente que as histórias sobre a Montanha de
Açúcar não passavam de pura mentira; no entanto, deixavam-no permanecer na
granja, sem trabalhar, e ainda por cima com direito a um copo de cerveja por dia.
Depois que o casco ficou bom, Sansão trabalhou mais
violentamente do que nunca. Aliás, naquele ano todos os bichos trabalharam feito
escravos. Além da faina normal na fazenda e da reconstrução do moinho de
vento, ainda houve a escola dos porquinhos, iniciada em março. Às vezes
tornava-se difícil agüentar as longas horas sem comer, mas Sansão nunca
fraquejou. Em nada do que dizia ou fazia era possível perceber qualquer sinal
de que sua energia já não era a mesma de antigamente. Apenas sua aparência
estava um pouco modificada; o pêlo já não era tão brilhante e as ancas pareciam
haver murchado. Sansão vai-se recuperar quando crescer o capim da primavera,
diziam os outros porém a primavera chegou e Sansão não mudou de aspecto.
Por vezes, na rampa da pedreira, quando enrijecia a musculatura contra o peso
de um enorme pedregulho, tinha-se a impressão de que apenas a vontade o
mantinha de pé. Nesses momentos seus lábios formavam claramente as palavras
Trabalharei mais ainda; não emitia qualquer som. Novamente Quitéria e
Benjamim o aconselharam, porém ele não deu atenção. Seu décimo segundo
aniversário se aproximava.
Não se importava com o que sucedesse, desde que pudesse
acumular uma boa quantidade de pedras antes de aposentar-se.
Certa noite, no verão, correu a súbita notícia de que algo
acontecera a Sansão, que havia saído sozinho para puxar uns montes de pedra
até o moinho. E era verdade. Poucos minutos depois chegaram dois pombos
afobados:
Sansão está caído! Não consegue levantar-se!
Metade dos animais da granja correu para a colina do moinho
de vento. Lá estava Sansão, deitado entre os paus da carroça, com o pescoço
esticado e sem poder sequer levantar a cabeça. Corria-lhe da boca um filete de
sangue. Quitéria ajoelhou-se a seu lado.
Sansão chamou ela você está bem?
É o meu pulmão disse ele quase sem voz. Não tem
importância. Vocês terminarão o moinho sem mim. Já deixei bastante pedra aí,
De qualquer maneira só me restava um mês de atividade. Para falar a verdade,
tenho estado à espera desta hora. E, como Benjamim também está ficando velho
talvez o deixem aposentar-se para me fazer companhia.
Precisamos de socorro imediatamente gritou Quitéria.
Alguém vá correndo Contar a Garganta o que aconteceu.
Os animais todos correram à casa-grande para dar a notícia a
Garganta. Só ficaram Quitéria e Benjamim, que se deitou ao lado de Sansão e,
sem dizer uma palavra, ficou a espantar-lhes as moscas com o rabo comprido.
Mais ou menos um quarto de hora depois, Garganta apareceu, cheio de simpatia
e preocupação. Disse que o Camarada Napoleão tomara conhecimento,
abaladíssimo, do mal que sucedera a um dos trabalhadores mais leais da granja,
e já estava tratando de enviar Sansão para tratar-se no hospital em Willingdon.
Os animais sentiram certa inquietação (com exceção de Mimosa e Bola-de-
Neve, nenhum deles jamais saíra da granja) e não gostaram da idéia de seu
camarada ir parar nas mãos dos humanos. Entretanto Garganta os convenceu,
facilmente, de que o cirurgião veterinário de Willingdon poderia tratar do caso de
Sansão muito melhor do que eles, na granja. Cerca de meia hora mais tarde,
quando Sansão já se recuperara um pouco, conseguiram pô-lo de pé e ele
cambaleou de volta até a baia, onde Quitéria e Benjamim lhe haviam preparado
uma boa cama de palha.
Durante os dois dias seguintes Sansão permaneceu na baia. Os
porcos enviaram uma garrafa contendo um remédio cor-de-rosa, encontrado no
armarinho do banheiro, e Quitéria servia-o a Sansão duas vezes ao dia, após as
refeições. À noite, Quitéria permanecia a seu lado, conversando com ele,
enquanto Benjamim afastava as moscas. Sansão afirmava não estar triste com o
acontecido. Caso se recuperasse bem, poderia viver mais três anos, e já
imaginava os dias tranqüilos que passaria no rincão da pastagem. Seria a
primeira vez que lhe sobraria tempo de folga para estudar e melhorar seus
conhecimentos. Pretendia dedicar o resto de sua existência ao aprendizado das
vinte e duas letras restantes do alfabeto.
Contudo, Benjamim e Quitéria só podiam estar a seu lado após
as horas de trabalho, e foi durante o dia que o carroção veio buscá-lo. Os
animais estavam na lavoura semeando nabos, sob a supervisão de um porco, e
ficaram admirados ao verem Benjamim a galope, vindo da direção das casas da
granja ao encontro deles, zurrando feito louco. Era a primeira vez na vida que
viam Benjamim excitado para falar a verdade era a primeira vez que alguém o
via galopar.
Depressa, depressa! gritou. Venham depressa! Estão
levando Sansão! Sem esperar ordens do porco, largaram o trabalho e
correram de volta para as casas. Realmente, lá estava um carroção fechado,
puxado por dois cavalos, com um letreiro no lado e um homem de chapéu-coco
sentado na boléia. A baia de Sansão estava vazia.
Os bichos se apinharam ao redor do carroção.
Até breve, Sansão! gritaram. Até breve!
Idiotas! Idiotas! exclamou Benjamim corcoveando em volta
deles e ferindo o chão com os cascos pequeninos. Imbecis! Não vêem o que
está escrito ali ao lado?
Isso fez calar os animais e ouviu-se um psss. Maricota
começou a soletrar as palavras, mas Benjamim empurrou-a para um lado e leu
em meio a grande silêncio:
Alfred Simmonds, Matadouro de Cavalos, Fabricante de
Cola, Willingdon. Peles e Farinha de Ossos. Fornece para Canis. Será que
vocês não percebem? Vão levar Sansão para o carniceiro! Houve um grito de
horror dos bichos. Nesse momento o homem da boléia estalou o chicote e os
cavalos saíram a trote vivo, abandonando o pátio. Os bichos correram atrás,
gritando com todas as forças. Quitéria abriu caminho até a frente. O carroção
tomou velocidade. Quitéria tentou fazer que suas pernas grossas galopassem e
conseguiu um trotezinho.
Sansão! gritou ela. Sansão! Sansão! Sansão!
Nesse exato momento, como se tivesse ouvido a barulheira de fora, apareceu na
janelinha de trás da carroça a cara de Sansão, com sua mancha branca no
focinho.
Sansão! berrou Quitéria desesperadamente. Sansão!
Saia daí! Saia depressa! Estão levando-o para a morte!
Os bichos gritavam a um tempo:
Saia daí, Sansão, saia daí! Todavia o carroção tomava
velocidade e começava a distanciar-se. Não podiam saber se Sansão havia
entendido Quitéria. Logo depois, entretanto, sua cara desapareceu da janela e
ouviu-se o barulho da tremenda pancadaria de seus cascos no interior do
carroção. Ele tentava livrar-se de qualquer maneira. Tempo houve em que com
alguns coices Sansão transformaria aquela carroça num monte de lenha. Mas,
ai! sua força o abandonara; em poucos instantes, o som das batidas diminuiu e
morreu. Desesperados, os animais suplicaram aos dois cavalos que puxavam o
carroção para que se detivessem.
Camaradas! Camaradas! gritavam eles. Não levem um
irmão de vocês para essa morte! Porém os brutos estúpidos, ignorantes
demais para entenderem o que acontecia, limitaram-se a murchar as orelhas e
apertar o passo. A cara de Sansão não reapareceu mais na janela. Alguém
pensou em correr à frente e fechar a porteira das cinco barras, mas era tarde
demais, pois logo o carroção atravessava a porteira e desaparecia rapidamente
na estrada. Sansão nunca mais foi visto.
Três dias mais tarde, chegou a notícia de que havia falecido no
hospital veterinário de Willingdon, a despeito de ter recebido todos os cuidados
que um cavalo merece. Garganta veio dar a notícia. Presenciara, disse, os
últimos momentos de Sansão.
Foi a cena mais comovente de minha vida! disse
Garganta, erguendo a pata e deixando rolar uma lágrima. Eu estava à sua
cabeceira no instante final. Quase sem poder falar, ele sussurrou ao meu ouvido
que seu único pesar era morrer antes de ver terminado o moinho de vento. Para
a frente, camaradas! Viva a Granja dos Bichos! Viva o Camarada Napoleão!
Avante em nome da Revolução! Napoleão tem sempre razão. Estas foram suas
últimas palavras, camaradas.
A seguir, os modos de Garganta se transformaram. Caiu em
silêncio por um momento e seus olhinhos deram miradas suspeitosas para os
lados antes de prosseguir.
Chegara a seu conhecimento, disse ele, que um boato idiota e
perverso circulara por ocasião da baixa de Sansão. Alguns animais haviam
notado que na carroça que transportou Sansão estava escrito Matadouro de
Cavalos, chegando à conclusão de que Sansão estava sendo mandado para o
carniceiro. Era quase inacreditável que um bicho pudesse ser tão estúpido. Com
certeza, gritou ele indignado, sacudindo o rabicho e dando pulinhos, com certeza
todos conheciam seu amado Líder, o Camarada Napoleão não? A explicação era
muito simples. A carroça pertencera, antes, ao carniceiro, depois fora comprado
pelo cirurgião veterinário, que ainda não apagara letreiro. Eis como se dera o
engano.
Os bichos ficaram imensamente aliviados com isso. E quando
Garganta continuou dando detalhes sobre a câmara mortuária de Sansão, o
extraordinário cuidado que recebeu e os caríssimos remédios que Napoleão
mandara comprar sem olhar o preço, desapareceram suas últimas dúvidas e a
tristeza pelo camarada morto foi mitigada pela certeza de que, pelo menos,
morrera feliz.
O próprio Napoleão apareceu no encontro do domingo seguinte
e pronunciou uma singela oração. em memória de Sansão. Não fora possível,
explicou, trazer de volta os despojos do lamentado camarada para o enterro,
porém dera ordem para que se confeccionasse uma grande coroa com louros do
jardim e a enviara para ser colocada no túmulo de Sansão. E anunciou que,
alguns dias depois, os porcos pretendiam realizar um banquete em memória de
Sansão.
Napoleão finalizou seu discurso relembrando as duas máximas
prediletas de Sansão. Trabalharei mais ainda e O Camarada Napoleão tem
sempre razão, máximas, disse, que cada animal deveria adotar para si próprio.
No dia marcado para o banquete, chegou de Willingdon a
carroça de um armazém e desembarcou na casa-grande um engradado de
madeira. Naquela noite ouviu-se uma alta cantoria seguida de algo que parecia
uma discussão violenta e que terminou cerca das onze horas com uma tremenda
barulheira de vidros quebrados. No dia seguinte ninguém se levantou na casagrande,
até o meio-dia, e correu uma conversa de que os porcos haviam
conseguido, não se sabia de que maneira, dinheiro para adquirir outra caixa de
uísque.
CAPÍTULO X
Passaram-se anos. As estações vinham, passavam e a curta
vida dos bichos se consumia. Tempo chegou em que ninguém mais se lembrava
de antes da Revolução, com exceção de Quitéria, Benjamim, o corvo Moisés e
alguns porcos.
Maricota morreu; Ferrabrás, Lulu e Cata-vento morreram.
Jones também morreu num asilo de alcoólatras, noutra cidade. Bola-de-Neve
fora esquecido. Sansão também, exceto pelos poucos que o haviam conhecido.
Quitéria era agora uma égua velha, corpulenta, com os olhos atacados pela
catarata. Já ultrapassara de dois anos a idade de aposentadoria. Aquela história
de reservar um pedaço de campo para os animais idosos não era mais nem
mencionada. Napoleão tornara-se um cachaço madurão de uns cento e
cinqüenta quilos. Garganta estava tão gordo que mal conseguia abrir os olhos.
Somente Benjamim continuava o mesmo, apenas de focinho um pouco mais
grisalho e, desde a morte de Sansão, mais rabugento e taciturno do que nunca.
Agora existiam muito mais criaturas na granja embora o índice
de crescimento não fosse aquele que esperavam nos primeiros anos. Haviam
nascido muitos animais, para os quais a Revolução não passava de uma obscura
tradição transmitida verbalmente, e outros que nem sequer tinham ouvido falar
coisa nenhuma a respeito. A granja contava agora com três cavalos além de
Quitéria. Eram bichos formidáveis, trabalhadores incansáveis, bons camaradas
mas muito estúpidos. Nenhum se mostrou capaz de aprender o alfabeto além da
letra B. Aceitavam tudo quanto lhes era dito a respeito da Revolução e dos
princípios do Animalismo, especialmente por Quitéria a quem dedicavam um
respeito filial, mas era duvidoso que entendessem lá grande coisa.
A granja prosperava e estava mais bem organizada; fora até
aumentada pela compra de dois tratos de terra ao Sr. Pilkington. O moinho de
vento afinal, fora concluído com êxito e a granja possuía uma debulhadeira e um
elevador de feno próprio, e construções novas se haviam erguido. Whymper
comprara uma aranha. O moinho de vento, entretanto, não era usado para gerar
energia elétrica. Usavam-no para moer cereais, coisa que dava bom dinheiro.
Os animais estavam a braços com a construção de outro moinho de vento;
quando este estivesse concluído, dizia-se, seriam instalados os dínamos. Mas
naquele luxo de que Bola-de-Neve lhes falara certa vez, baias com luz elétrica e
água quente e fria, e na semana de três dias, não se falava mais. Napoleão
denunciara tais idéias como contrárias aos princípios do Animalismo. A
verdadeira felicidade, dizia ele, estava em trabalhar bastante e viver frugalmente.
De certa maneira, parecia como se a granja se houvesse
tornado rica sem que nenhum animal tivesse enriquecido exceto, é claro, os
porcos e os cachorros. Talvez isso acontecesse por haver tantos porcos e tantos
cachorros. Não que esses animais não trabalhassem, à sua moda. Garganta
nunca se cansava de explicar que havia um trabalho insano na ação de
supervisionar e organizar a granja. Grande parte desse trabalho era de natureza
tal que estava além da ignorância dos bichos. Tentando explicar, Garganta dizialhes
que os porcos despendiam diariamente enormes esforços com coisas
misteriosas chamadas arquivos, relatórios, minutas e memorandos. Eram
grandes folhas de papel que precisavam ser miudamente cobertas com escritas
e, logo depois, queimadas no forno. Era tudo da mais alta importância para o
bem-estar da granja, dizia Garganta. A verdade é que nem os porcos nem os
cachorros produziam um só grama de alimento com o seu trabalho; e havia um
bocado deles, com o apetite sempre em forma.
Quanto aos outros, sua vida, ao que sabiam, continuava a
mesma. Geralmente andavam com fome, dormiam em camas de palha, bebiam
égua no açude e trabalhavam no campo; no inverno, sofriam com o frio; no verão,
com as moscas. De vez em quando, os mais idosos rebuscavam a apagada
memória e tentavam determinar se nos primeiros dias da Revolução, logo após a
expulsão de Jones, as coisas haviam sido melhores ou piores do que agora. Não
C9nseguiam lembrar-se. Nada havia com que estabelecer comparação: não
tinham em que basear-se, exceto as estatísticas de Garganta, que
invariavelmente provavam estar tudo cada vez melhor. Os bichos consideravam o
problema insolúvel; de qualquer maneira, dispunham de muito pouco tempo para
essas especulações. Apenas o velho Benjamim afirmava lembrar-se de cada
detalhe de sua longa vida e saber que as coisas nunca haviam estado e nunca
haveriam de ficar nem muito melhor nem muito pior, sendo a fome, o cansaço e a
decepção, assim dizia, a lei imutável da vida.
Mesmo assim os bichos nunca perdiam a esperança. Mais
ainda, jamais lhes faltava, nem por instantes, o sentimento de honra pelo
privilégio de serem membros da Granja dos Bichos que continuava ser a única
em todo o condado em toda a Inglaterra! de propriedade dos animais e por
eles administrada. Nenhum deles, nem mesmo os mais moços, nem mesmo os
chegados de outras granjas, situadas algumas a dez ou vinte quilômetros de
distância, jamais deixaram de maravilhar-se com isto. E quando ouviam o tiro da
espingarda e viam a bandeira flutuando no topo do mastro, seu coração se
inchava de orgulho e a conversa passava a girar em torno dos históricos dias de
antanho, da expulsão de Jones, da inscrição dos Sete Mandamentos, das
grandes batalhas em que os invasores humanos haviam sido derrotados.
Nenhum dos antigos sonhos fora abandonado. A República dos Bichos, que o
velho Major havia previsto, quando os verdes campos da Inglaterra não mais
seriam pisados pelos pés humanos, era coisa em que ainda acreditavam. O dia
havia de chegar. Podia ser mais cedo ou mais tarde, talvez não acontecesse
durante a vida de qualquer dos animais de então, mas havia de chegar. Até a
melodia de Bichos da Inglaterra talvez fosse cantarolada secretamente aqui e ali;
de qualquer maneira, a verdade é que cada bicho da granja a conhecia, embora
nenhum tivesse coragem de cantá-la em voz alta. Talvez fosse verdade que a
vida era difícil e que nem todas as suas esperanças se haviam concretizado; mas
tinham a consciência de não serem iguais aos outros animais. Se tinham fome,
não era por alimentarem alguns tirânicos seres humanos; se trabalhavam
arduamente, pelo menos trabalhavam em seu próprio benefício. Nenhuma
criatura dentre eles andava sobre duas pernas. Nenhuma criatura era dona de
outra. Todos os bichos eram iguais.
Certo dia, no início do verão, Garganta mandou que as ovelhas
o seguissem e levou-as para um campo situado nos confins da granja, que fora
tomado de brotação de vidoeiro. As ovelhas passaram o dia inteiro roendo as
brotações, sob a supervisão de Garganta. À noite, ele regressou à granja, mas,
como disse às ovelhas que permanecessem lá, terminaram ficando a semana
toda durante a qual os outros bichos nem as enxergavam. Garganta passava com
elas a maior parte do dia. Estava, explicou, ensinando-lhes uma nova canção para
a qual precisava de certo sigilo.
Foi logo após o retorno das ovelhas, numa noite agradável,
quando os bichos haviam terminado seu trabalho e regressavam à granja, que
se ouviu, vindo do pátio, um relinchar horripilante. Arrepiados os animais
estacaram. Era a voz de Quitéria. Ela relinchou outra vez e os bichos dispararam
a galope para o pátio. Viram, então, o que ela havia visto.
Um porco caminhava sobre as duas patas traseiras.
Sim, era Garganta. Um tanto desajeitado devido à falta de
prática em manter seu volume naquela posição, mas em perfeito equilíbrio,
passeava pelo pátio. Momentos depois, saiu pela porta da casa uma comprida
coluna de porcos, todos caminhando sobre as patas de trás. Uns melhor que os
outros, um ou dois até meio desequilibrados e dando a impressão de que
apreciariam o apoio de uma bengala, mas todos fizeram a volta ao pátio bastante
bem. Finalmente houve um alarido dos cachorros, ouviu-se o cocoricó
esganiçado do garnisé e emergiu Napoleão, majestosamente, desempenado,
largando olhares arrogantes para os lados, com os cachorros brincando à sua
volta.
Trazia nas mãos um chicote.
Houve um silêncio mortal. Surpresos, aterrorizados, uns junto
aos outros, os bichos olhavam a fila de porcos marchar lentamente em redor do
pátio. Pareceu-lhes enxergar o mundo de cabeça para baixo. Então veio um
momento em que, passado o choque e a despeito de tudo a despeito do terror
dos cachorros e do hábito, arraigado após tantos anos, de nunca se queixarem,
nunca criticarem, pouco importava o que sucedesse poderiam lançar uma
palavra de protesto. Porém, exatamente nesse instante, como se obedecessem a
um sinal combinado, as ovelhas. em uníssono, estrondaram num espetacular
balido:
Quatro pernas bom, duas pernas melhor! Quatro pernas
bom, duas pernas melhor! Quatro pernas bom, duas pernas melhor!
Baliram durante cinco minutos sem cessar. E, quando se
calaram, fora-se a oportunidade da palavra de protesto, pois os porcos já haviam
voltado para dentro da casa.
Benjamim sentiu um focinho esfregar-lhe o ombro. Era Quitéria.
Seus olhos pareciam mais encobertos que nunca. Sem dizer palavra, ela o puxou
delicadamente pela crina, levando-o até o fundo do grande celeiro, onde estavam
escritos os Sete Mandamentos. Durante um ou dois minutos ficaram olhando a
parede alcatroada com o grande letreiro branco.
Minha vista está falhando disse ela finalmente. Mesmo
quando eu era moça não conseguia ler o que estava escrito aí. Mas parece-me
agora que parede está meio diferente. Os Sete Mandamentos são os mesmos de
sempre, Benjamim?
Pela primeira vez, Benjamim consentiu em quebrar sua norma,
e leu para ela o que estava escrito na parede. Nada havia, agora, senão um único
Mandamento dizendo:
TODOS OS ANIMAIS SÃO IGUAIS
MAS ALGUNS ANIMAIS SÃO MAIS IGUAIS DO QUE OS
OUTROS
Depois disso, não foi de estranhar que, no dia seguinte, os
porcos que supervisionavam o trabalho da granja andassem com chicotes nas
patas. Nem estranharam ao saber que os porcos haviam comprado um aparelho
de rádio, que estavam tratando da instalação de um telefone e da assinatura de
jornais e revistas. Não estranharam quando Napoleão foi visto passear nos
jardins da casa com um cachimbo na mão, nem quando os porcos se
assenhorearam das roupas do Sr. Jones e passaram a usá-las, sendo que
Napoleão apresentou-se vestindo um casaco negro, calças de caçador e
perneiras de couro, enquanto sua porca favorita surgia com o vestido de seda
que a Sra. Jones usava aos domingos.
Uma semana mais tarde, após o meio-dia, apareceram
numerosas charretes subindo rumo à granja. Uma representação de granjeiros
vizinhos fora convidada a realizar uma visita de inspeção. Toda granja lhes foi
mostrada e eles expressaram admiração por tudo quanto viram, especialmente
pelo moinho de vento. Os bichos estavam limpando a lavoura de nabos.
Trabalhavam diligentemente, mal levantando o olhar do chão e sem saber a quem
temer mais, se os porcos, se os visitantes humanos.
Naquela noite, altas risadas e cantorias chegaram da casa. Lá
pelas tantas, ante o som das vozes misturadas, os bichos encheram-se de
curiosidade. Que estaria acontecendo lá dentro, agora que, pela primeira vez,
encontravam-se em teremos de igualdade os animais e os seres humanos?
Pensando todos a mesma coisa, dirigiram-se furtivamente para o jardim da casa.
No portão titubearam, um tanto temerosos, mas Quitéria deu o
exemplo e entrou. Andaram, pé ante pé, até a casa, e os mais altos espiaram pela
janela da sala de jantar. Lá dentro, em volta de uma mesa grande, estavam
sentados meia dúzia de granjeiros e meia dúzia de porcos dentre os mais
eminentes, Napoleão no lugar de honra, à cabeceira. Os porcos pareciam
perfeitamente à vontade em suas cadeiras. O grupo estivera jogando cartas, mas
havia interrompido o jogo por instantes, evidentemente para os brindes. Um
grande jarro circulava e os copos se enchiam de cerveja. Ninguém notou as
caras admiradas dos bichos, que espiavam pela janela.
O Sr. Pilkington, de Foxwood, levantara-se com o copo na mão.
Disse que ia convidar os presentes para um brinde. Mas, antes, desejava dizer
algumas palavras, que julgava de seu dever pronunciar.
Era motivo de grande satisfação para ele e tinha certeza de
que falava por todos os demais sentir que o longo período de desconfianças e
desentendimentos chegara ao fim. Tempo houvera não que ele ou qualquer
dos presentes tivesse pensado dessa maneira mas tempo houvera em que os
respeitáveis proprietários da Granja dos Bichos haviam sido olhados, não diria
com hostilidade, mas com uma certa apreensão, por seus vizinhos humanos.
Ocorreram incidentes desagradáveis e idéias errôneas haviam circulado.
Parecera a muitos que a existência de uma granja pertencente a animais e por
eles administrada era coisa um tanto fora do comum e poderia vir a causar
transtornos à vizinhança. Muitos granjeiros supuseram, sem as verificações
devidas, que em tal granja prevaleceria um espírito de licensiosidade e
indisciplina. Haviam-se preocupado com o efeito de tudo isso sobre seus
próprios animais e, até mesmo, sobre seus empregados humanos. Mas todas
essas dúvidas estavam agora dissipadas. Hoje ele e seus companheiros haviam
visitado a Granja dos Bichos, inspecionando cada metro quadrado com seus
próprios olhos, e que haviam encontrado? Não apenas métodos dos mais
modernos, mas uma ordem e uma disciplina que podiam servir de exemplo.
Julgava poder afirmar que os animais inferiores da Granja dos Bichos
trabalhavam mais e recebiam menos comida do que quaisquer outros animais do
condado. Para falar a verdade, ele e seus companheiros de visita haviam visto,
naquele dia, muita coisa que pretendiam introduzir imediatamente em suas
próprias granjas.
Finalizaria suas palavras, continuou, assinalando mais uma vez
os sentimentos de amizade, que prevaleciam e deviam prevalecer entre a Granja
dos Bichos e seus vizinhos. Entre os porcos e os seres humanos não havia, e
eram inteiramente inadmissíveis quaisquer conflitos de interesses. Suas lutas e
suas dificuldades eram uma só. Pois o trabalho não constituía o mesmo problema
em toda parte? A essa altura evidenciou-se que o Sr. Pilkington pretendia soltar
para a platéia algum dito espirituoso, mas por alguns momentos pareceu por
demais dominado pelo gozo da própria piada, para poder dizê-la. Depois de
muita sufocação, que deixou vermelhos os seus vários queixos, ele conseguiu
largá-la: Se os senhores têm que lutar com os seus animais inferiores, nós
temos as nossas classes inferiores. Este bon mot causou sensação na mesa, e
o Sr. Pilkington novamente felicitou os porcos pelas baixas rações, pelas muitas
horas de trabalho e pela ausência geral de tolerância que observara na Granja
dos Bichos.
E agora, disse finalmente, convidava o grupo a levantar-se e
verificar se os copos estavam cheios.
Senhores concluiu o Sr. Pilkington proponho um
brinde: À prosperidade da Granja dos Bichos!
Houve uma entusiástica saudação e depois muitas palmas.
Napoleão ficou tão emocionado que deixou seu lugar e deu a volta à mesa para
tocar com seu copo o do Sr. Pilkington, antes de esvaziá-lo. Quando as
felicitações acabaram, Napoleão, que permanecera de pé, disse que iria também
proferir algumas palavras.
Como todos os discursos de Napoleão, aquele foi curto e direto
ao assunto. Também ele, disse, alegrava-se de que o período de
desentendimentos tivesse chegado ao fim. Por longo tempo houve rumores
inventados, acreditava, e tinha razões para isso, por algum inimigo malintencionado
de que havia algo de subversivo e mesmo de revolucionário nos
pontos de vista seus e de seus companheiros. Tinham passado por desejosos de
fomentar a rebelião entre os animais das granjas vizinhas. Nada podia estar
mais longe da verdade! Seu único desejo, agora como no passado era viver em
paz e gozando de relações normais com os seus vizinhos. Aquela granja que
ele tinha a honra governar, acrescentou, era um empreendimento cooperativo. As
escrituras que estavam em seu poder conferiam a posse a todos os porcos.
Não acreditava que ainda restassem quaisquer das velhas
suspeitas, mas certas modificações na rotina da granja haviam sido introduzidas
com o fito de promover uma confiança ainda maior. Até aquele momento os
bichos haviam conservado o hábito imbecil de dirigirem-se uns aos outros pela
alcunha de camarada. Isso ia acabar. Existira também o costume insólito, cuja
origem era desconhecida, de marchar aos domingos, desfilando frente a uma
caveira de porco pregada num poste. Isso também ia acabar, e a caveira já for a
enterrada. Os visitantes com certeza teriam observado também a bandeira verde
que tremulava no poste. Nesse caso teriam notado que as antigas figuras do
chifre e da ferradura, em branco, haviam sido suprimidas. Daí por diante seria
uma bandeira puramente verde.
Tinha apenas um reparo, disse, a fazer ao excelente discurso,
bem próprio de um bom vizinho, do Sr. Pilkington. O Sr. Pilkington referira-se o
tempo todo à Granja dos Bichos. Naturalmente ele não podia saber mesmo
porque Napoleão o estava proclamando, naquele instante, pela primeira vez
que a denominação Granja dos Bichos for a abolida. A partir daquele momento,
sua granja voltaria a ser conhecida como Granja do Solar, que, aliás, parecialhe,
era seu nome correto e original.
Senhores concluiu Napoleão, levantarei o mesmo brinde,
mas sob forma diferente. Encham, até a borda, seus copos. Senhores, este é o
meu brinde. À prosperidade da Granja do Solar!
Houve as mesmas calorosas felicitações de antes, e os copos
foram esvaziados. Mas aos olhos dos bichos, que lá de for a espiavam, pareceu
que algo estranho estava acontecendo. Que diabo teria alterado a cara dos
porcos? Os olhos embaçados de Quitéria iam de uma cara para outra. Algumas
tinham cinco queixos, outras quatro, outras três. Mas alguma coisa parecia
misturá-las e modificá-las. Então, findos os aplausos, o grupo pegou novamente
nas cartas, reencetando o jogo interrompido, e os animais afastaram-se
silenciosamente.
Não haviam, porém, chegado sequer a vinte metros quando se
detiveram, ante o vozerio alto que vinha lá de dentro. Voltaram correndo e
tornaram a espiar pela janela.
Realmente, era uma discussão violenta. Gritos, socos na mesa,
olhares suspeitos, furiosas negativas. A origem do caso, ao que parecia, fora o
fato de Napoleão e o Sr. Pilkington haverem, ao mesmo tempo, jogado um ás de
espadas.
Doze vozes gritavam cheias de ódio e eram todas iguais. Não
havia dúvida, agora, quanto ao que sucedera à fisionomia dos porcos. As
criaturas de fora olhavam de um porco para um homem, de um homem para um
porco e de um porco para um homem outra vez; mas já se tornara impossível
distinguir quem era homem, quem era porco.
Sumário
APRESENTAÇÃO 4
CAPÍTULO I 5
CAPÍTULO II 12
CAPÍTULO III 19
CAPÍTULO IV 25
CAPÍTULO V 30
CAPÍTULO VI 38
CAPÍTULO VII 45
CAPÍTULO VIII 54
CAPÍTULO IX 65
CAPÍTULO X 74
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